GADvS repudia aprovação do “Estatuto da Família” pela Câmara dos Deputados
Nota de Repúdio
à aprovação do “Estatuto da Família”
por Comissão Especial da Câmara dos Deputados
O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) inscrita no CNPJ sob o n.º 17.309.463/0001-32, que tem como finalidades institucionais a promoção dos direitos da população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) e o enfrentamento da homofobia e da transfobia, com sede na Rua da Abolição, n.º 167, São Paulo/SP, CEP 01319-030, vem a público REPUDIAR VEEMENTEMENTE a aprovação, por Comissão Especial da Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei n.º 6.583/13, conhecido como “Estatuto da Família” (sic), dado o intuito evidentemente homofóbico (e certamente transfóbico) que desde sempre pautou a defesa do mesmo por seus propositores.
Primeiramente, o GADvS gostaria de destacar que claramente este “Estatuto da Família”, no singular, é uma clara resposta (e provocação) ao “Estatuto das Famílias”, idealizado pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, que visa proteger todos os agrupamentos familiares e não apenas um modelo único de família. Tal projeto foi proposto originalmente na Câmara dos Deputados (PL n.º 2.285/07), pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT/BA), mas devido ao mesmo ter sido completamente desfigurado por emendas reacionárias, foi posteriormente reapresentado no Senado Federal (PLS n.º 470/2013), pela Senadora Lídice da Mata (PSB/BA). Este sim é um Estatuto que merece aprovação (sem emendas discriminatórias), pois não visa criar privilégios a apenas uma espécie de família (a heteroafetiva relativamente à homoafetiva), como visa o “Estatuto da Família” aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Como bem dito por Toni Reis em debate com o (lamentável) pastor Silas Malafaia, realizado na Câmara dos Deputados no dia 25.06.2015, “o que nos separa é um s”: enquanto nós defendemos a proteção de todas as formas de famílias (consensuais e não-opressoras), no plural, reacionários e fundamentalistas religiosos defendem apenas uma forma de família, menosprezando todas as outras – e depois estes(as) dizem que seriam as pessoas e os(as) militantes LGBT que estariam buscando “privilégios”…
De qualquer forma, cabe notar que merece profundo repúdio o intuito claramente discriminatório que embasa o referido Estatuto. É notório que todos os debates travados sobre o mesmo perante a mídia e a sociedade em geral se referem apenas ao fato de o Estatuto citar unicamente a união entre o homem e a mulher como entidade familiar, sem citar expressamente a união entre pessoas do mesmo sexo (“sexo” no sentido de “gênero”) – nada tratando dos diversos outros aspectos do Estatuto. Sobre isso, embora o GADvS destaque que não há, no projeto, nenhuma proibição ao reconhecimento do status jurídico-familiar da união homoafetiva, razão pela qual o mesmo pode ser interpretado extensivamente para protegê-la (da mesma forma que o artigo 1.723 do Código Civil foi interpretado pelo Supremo Tribunal Federal no histórico julgamento da ADPF n.º 132 e da ADI n.º 4277, em 2011, para reconhecer a inconstitucionalidade do não-reconhecimento jurídico das famílias homoafetivas relativamente às famílias heteroafetivas), não se pode deixar de reconhecer o intuito discriminatório do referido projeto. Seu propositor e defensores claramente querem discriminar casais do mesmo sexo, conferindo-lhes menos direitos e menos dignidade relativamente a casais de sexos opostos, algo flagrantemente inconstitucional, já que nossa Constituição proíbe discriminações e preconceitos de qualquer natureza (art. 3º, IV). É notório no meio jurídico que uma diferenciação só é juridicamente válida se houver uma motivação lógico-racional que lhe sustente, consoante a clássica lição de Celso Antonio Bandeira de Mello acerca do tema – motivação esta inexistente no caso concreto. Não há fundamento juridicamente válido que justifique constitucionalmente a discriminação da união homoafetiva relativamente à heteroafetiva pela mera homogeneidade de sexos em um caso e diversidade de sexos em outro.
Cabe lembrar que o referido projeto sequer conceitua o que constitui “família”, apenas citando a união entre pessoas de sexos opostos e a comunidade de quaisquer dos pais com seus descendentes como espécies de família (repetindo, aqui, a Constituição Federal). Ao passo que a concepção de família conjugal propalada por seus defensores seria apenas o núcleo formado entre homem e mulher e sua prole. Ou seja, parecem defender que a capacidade procriativa seria uma espécie de “requisito indispensável” à constituição da família merecedora da especial proteção a ela garantida pela Constituição (art. 226, caput). Contudo, o argumento não se sustenta à mais rasa das análises, pois casais heteroafetivos estéreis, que não possuem capacidade procriativa, não deixam de ser reconhecidos como famílias nem são impedidos de se casar (civilmente) ou ter sua união estável reconhecida pelo Estado.
Fica claro, assim, que os defensores do referido “Estatuto da Família” querem impor à sociedade uma determinada concepção religiosa de família, o que viola gravemente o princípio do Estado Laico. Nem se diga, em resposta a isso, que “Estado Laico não é Estado Ateu” (sic), como sempre fazem os fundamentalistas religiosos quando confrontados com este argumento: ele realmente não é “Estado Ateu”, já que este é o que proíbe a liberdade religiosa. Estado Laico é aquele separado de quaisquer instituições religiosas, que garante a mais ampla liberdade de crença e descrença e (aqui o ponto mais relevante) aquele que não permite que fundamentações religiosas influenciem os rumos políticos e jurídicos da nação[1]. Essa parte final, que consideramos inerente a qualquer concepção que leve a laicidade a sério, encontra-se consagrada no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal. Logo, irrelevante que a maioria da população seja cristã ou professe qualquer outra fé religiosa, pois a própria liberdade religiosa enquanto direito fundamental e a laicidade estatal enquanto garantia fundamental visam justamente para proteger minorias (religiosas ou não) do despotismo das maiorias religiosas. Essa é uma das essências do constitucionalismo: proteger minorias e grupos vulneráveis das arbitrariedades das maiorias.
Por outro lado, não se pode deixar de lembrar do teor da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal nos dias 04 e 05 de maio de 2011, quando este reconheceu a união duradoura, pública e contínua entre pessoas do mesmo sexo enquanto família, em “Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva” (ADPF n.º 132 e ADI n.º 4277). Como grupo de advogados, obviamente o GADvS sabe que existe margem para “diálogos institucionais” entre o Parlamento e a Suprema Corte, todavia, não há “diálogo” nenhum por parte do Congresso Nacional com o STF acerca do tema. Ele se limita a mostrar inconformismo com a decisão e invocar o argumento já rechaçado pela Suprema Corte, a saber, a literalidade do §3º do art. 226 da Constituição Federal. A isso, diversas foram as respostas do STF, sendo que entre as principais está a lição basilar de Direito segundo a qual não se pode interpretar um dispositivo isoladamente, devendo sua interpretação ser sistemática com as demais normas constantes do mesmo estatuto jurídico (no caso, a Constituição Federal). Assim, parafraseando o STF, considerando que a Constituição não proíbe a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, se limitando a dizer que a união entre pessoas de sexos opostos constitui família, e considerando que a Constituição proíbe preconceitos e discriminações de qualquer natureza, então não pode o §3º do art. 226 da Constituição ser interpretado de maneira preconceituosa (homofóbica), razão pela qual deve se realizar uma interpretação extensiva para se entender que a Constituição protege (implicitamente) a união homoafetiva enquanto entidade familiar, com igualdade de direitos relativamente à união heteroafetiva. Sobre isso, nada diz o Congresso, que, despoticamente e de maneira que beira a “birra institucional”, se limita a querer aprovar uma lei com uma redação que o STF já disse não constituir óbice ao reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como família e com um intuito (discriminatório) que o STF já deixou claro ser inconstitucional. Logo, se referida lei for aprovada, ela certamente deverá ser derrubada pelo STF em ação direta de inconstitucionalidade.
Sobre o conceito de família, tão bem trabalhado pelo Relator daquele julgamento, Ministro Ayres Britto, aproveitamos para destacar aqui a lição do Ministro Fux (pp. 13-14 de seu voto no citado julgamento), que consideramos sintetizar com clareza a compreensão da doutrina familiarista contemporânea sobre o tema (exemplificativamente: Paulo Lôbo, Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti): “O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional. […] Pois bem. O que distingue, do ponto de vista ontológico, as uniões estáveis, heteroafetivas, das uniões homoafetivas? Será impossível que duas pessoas do mesmo sexo não tenham entre si relação de afeto, suporte e assistência recíprocos? Que criem para si, em comunhão, projetos de vida duradoura em comum? Que se identifiquem, para si e para terceiros, como integrantes de uma célula única, inexoravelmente ligados? A resposta a essas questões é uma só: Nada as distingue. Assim como companheiros heterossexuais, companheiros homossexuais ligam-se e apoiam-se emocional e financeiramente; vivem juntos as alegrias e dificuldades do dia-a-dia; projetam um futuro comum. Se, ontologicamente, união estável (heterossexual) e união (estável) homoafetiva são simétricas, não se pode considerar apenas a primeira como entidade familiar. Impõe-se, ao revés, entender que a união homoafetiva também se inclui no conceito constitucionalmente adequado de família, merecendo a mesma proteção do Estado de Direito que a união entre pessoas de sexos opostos. […] É certo que o ser humano se identifica no agrupamento social em que vive, desde a sua célula mais elementar: a família. Permitir ao indivíduo identificar-se publicamente, se assim o quiser, como integrante da família que ele mesmo, no exercício da sua autonomia, logrou constituir, é atender ao princípio da dignidade da pessoa humana; permitir ao homossexual que o faça nas mesmas condições que o heterossexual é observar o mesmo respeito e a mesma consideração – é atender à igualdade material consagrada na Constituição. […] A aplicação da política de reconhecimento dos direitos dos parceiros homoafetivos é imperiosa, por admitir a diferença entre os indivíduos e trazer para a luz relações pessoais básicas de um segmento da sociedade que vive parte importantíssima de sua vida na sombra. Ao invés de forçar os homossexuais a viver de modo incompatível com sua personalidade, há que se acolher a existência ordinária de orientações sexuais diversas e acolher uma pretensão legítima de que suas relações familiares mereçam o tratamento que o ordenamento jurídico confere aos atos da vida civil praticados de boa-fé, voluntariamente e sem qualquer potencial de causar dano às partes envolvidas ou a terceiros. Ressalte-se este último ponto: uma união estável homoafetiva, por si só, não tem o condão de lesar a ninguém, pelo que não se justifica qualquer restrição ou, como é ainda pior, a limitação velada, disfarçada de indiferença”.
Em suma, usando conceito felizmente afirmado pela Suprema Corte dos EUA ao reconhecer o direito ao casamento civil igualitário, casais do mesmo sexo merecem igual dignidade jurídica relativamente a casais de sexos opostos. Daí caber reafirmar e defender a citada decisão do STF e a também histórica decisão do Conselho Nacional de Justiça em prol do reconhecimento do casamento civil igualitário no Brasil (Resolução CNJ n.º 175/2013) e de defender projetos de lei e de emenda à Constituição que deixem expresso o reconhecimento da família, do casamento civil e da união estável existente entre casais homoafetivos (para que, com sua aprovação, a discussão jurídica finalmente cesse sobre esses temas). Bem como a igualmente paradigmática decisão do Superior Tribunal de Justiça, nos dias 20 e 25.10.2011 (REsp 1.183.387/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão), segundo a qual “O pluralismo familiar engendrado pela Constituição explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF – impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. […] Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário – e não o Legislativo – que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos”.
Por fim, abstraída a questão jurídica, na qual temos absoluta tranquilidade de nova vitória do STF caso o tema novamente chegue a ele, o GADvS lamenta profundamente o fato de o Congresso Nacional estar cada vez mais tomado por reacionários(as) e fundamentalistas religiosos. Pessoas que se fecham em seus “dogmas” (por definição, “indiscutíveis”) e se recusam a sequer considerar a proteção de minorias e grupos vulneráveis que não sigam a cartilha moral e/ou religiosa que pregam. Querem impor um totalitarismo moral que não respeita e, pior, discrimina aqueles(as) que “ousam” viver a vida da forma que melhor sentido lhes faça. Ignoram que a liberdade é um direito fundamental que garante a todos(as) fazerem o que quiserem, desde que não prejudiquem terceiros, e que a homossexualidade, bissexualidade, travestilidade, transexualidade e a intersexualidade (as identidades LGBTI) não prejudicam quem quer que seja. Ignoram, ainda, que a liberdade só é efetivamente respeitada, enquanto liberdade real, quando o seu exercício não implica em negativa de direitos. Essas bancadas, representadas pelo que se convencionou chamar de “Bancadas BBB (Bala, Boi e Bíblia)” têm sempre se unido para fazer oposição a qualquer proposta progressista de reconhecimento de direitos. Isso é lamentável. É preciso que o Congresso Nacional cumpra seu papel de representar toda a população e não somente parte dela. É preciso que ele se conscientize que democracia não é “ditadura da maioria”, mas governo do povo, pelo povo e para o povo, povo este que engloba minorias e grupos vulneráveis; é o regime jurídico em que a maioria define os rumos políticos e jurídicos da nação, desde que respeite os direitos das minorias e grupos vulneráveis, não negando a estas e estes direitos que garante a si, maioria. Por isso, com ressignificação, permanece atual a máxima de Sérgio Buarque de Holanda: a democracia [realmente] constitui um lamentável mal entendido nesse país.
Pelas razões acima, o GADvS REPUDIA VEEMENTEMENTE a aprovação do “Estatuto da Família” (PL n.º 6.583/13) pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados e clama para que os(as) deputados(as) progressistas e efetivamente comprometidos(as) com os direitos humanos apresentem recurso e levem a discussão ao Plenário da Câmara, para que esta não entre para a história enquanto órgão institucionalmente homofóbico, visto ser homofóbico o desejo de discriminar famílias conjugais homoafetivas relativamente às heteroafetivas. Caso isto não aconteça, ou caso o Plenário da Câmara mantenha essa nefasta aprovação, espera o GADvS que o Senado Federal o rejeite ou, no limite, a Presidenta da República o vete (e, neste caso, este veto seja mantido pelo Congresso Nacional), sob pena de o Brasil afirmar-se institucionalmente homofóbico perante a comunidade internacional.
São Paulo, 28 de setembro de 2015.
GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero
Paulo Iotti
Diretor-Presidente
[1] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Tomemos a sério o princípio do Estado Laico. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1830, 5 jul. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11457>. Acesso em: 27 set. 2015.