‘Homossexuais amam, com todos os direitos e deveres’, diz João Silvério Trevisan
Militante pelos direitos homossexuais desde os anos 70, quando em plena ditadura lançou o jornal Lampião da Esquina e o movimento Somos, o escritor, ensaísta, filósofo e cineasta João Silvério Trevisan conta que sentiu orgulho do com a aceitação da união homoafetiva. Para ele, não há mais como recuar na garantia de direitos homossexuais e o próximo passo é a criação de uma lei que puna a homofobia. Autor de “Devassos no Paraíso” e “Seis Balas num Buraco Só: a Crise do Masculino”, dois estudos sobre a sexualidade no Brasil, João Silvério diz que o 5 de maio é uma celebração do “direito de amar”.
O GLOBO : Qual a importância da decisão do STF?
JOÃO SILVÉRIO TREVISAN : Foi um divisor de águas na democracia brasileira. Fazia muito tempo que eu não tinha orgulho do Brasil. Ontem (quinta-feira), eu tive orgulho do Brasil ao ouvir os ministros falando com uma precisão, que eu não imaginava que existisse neles, sobre a questão democrática. Estamos ou não numa democracia? Se estamos, os direitos são para todos.
O GLOBO : Há uma estimativa do tamanho da comunidade homossexual?
JOÃO SILVÉRIO : Não há uma estimativa justamente por conta da invisibilidade. Ela é imensa e invisível. A bissexualidade brasileira é uma homossexualidade vivida clandestinamente. A quantidade de homens casados que vivem sua homossexualidade clandestinamente é escandalosa e assustadora. Então, a decisão do STF é uma mensagem importantíssima para essa comunidade desconhecida. É a aceitação de que existem homossexuais no Brasil e de que seus direitos não são diferentes dos direitos de nenhum outro cidadão. Mas homens adoram transar entre si e depois vão casar com mulher. É histórico no Brasil.
O GLOBO : E isso deve mudar?
JOÃO SILVÉRIO : Não. O que vai mudar é a ideia de que homens podem se amar entre si e mulheres podem se amar entre si. A união estável faz um reconhecimento de que homossexuais amam. E (a decisão do STF) foi uma lição para o Brasil de que nós, homossexuais, com nossa firmeza e resistência, temos o nosso direito de amar.
O GLOBO :”careta” com essa ideia de casamento?
JOÃO SILVÉRIO : É bem provável que estejamos virando caretas, na medida em que estamos nos atrelando a uma circunstância formalizada pelo Estado. Mas há o bônus, que é a conquista política da igualdade. Não é fácil você estar na rua e ver um mendigo olhando para você e gritando “viado tem tudo é que morrer”. É indescritível a dor que isso provoca. O que leva aquele mendigo a achar que ele é mais importante do que eu?
O GLOBO : A ofensa é maior quando vem de um mendigo?
JOÃO SILVÉRIO : A ofensa é exatamente igual. Mas estou dizendo que a coisa é tão violenta que, até para um pária social, eu estou abaixo dele. É um exemplo emblemático do lugar em que nós estamos: o cocô do cavalo do bandido.
O GLOBO : A união civil vai mudar isso?
JOÃO SILVÉRIO : Vai demorar muito. Celebramos a conquista legal, mas o que tem pela frente é assustador.
O GLOBO : E essa decisão do STF deve beneficiar o projeto de lei de pune a homofobia?
JOÃO SILVÉRIO : Não há mais possibilidade de retorno. Tudo o que acontece no Brasil é em função de um fato consumado e o STF deu agora um fato consumado. Não tem volta. É a armadilha na qual o Judiciário colocou o Legislativo. Nossos políticos estão no piloto automático. É uma classe altamente fisiológica.
O GLOBO : Que país é este que tem a Parada Gay como uma festa nacional, mas, na mesma Avenida Paulista, jovens gays apanham durante a noite?
JOÃO SILVÉRIO : É o país cordial. Não fazemos guerra cara a cara, fazemos por debaixo do pano. É a hipocrisia que nós vivemos. A cultura do Brasil é carnavalizada. É a cultura da máscara. Usamos a máscara para o bem e para o mal. Tem o lado bom, que é o bom humor, a esculhambação, a criatividade extraordinária e o afeto. E tem o jeitinho, que é a parte da sombra da cultura brasileira. É o jeitinho de não deixar as coisas claras. A falsa bissexualidade brasileira faz parte dessa máscara.
O GLOBO : O senhor fundou o primeiro movimento homossexual, o Somos, e o Lampião. Como vê o movimento LGBT hoje?
JOÃO SILVÉRIO : Tenho severas críticas ao movimento homossexual desde o começo. É um movimento de elite; e o que se conseguiu foi num nível de lobby. A comunidade homossexual brasileira é politicamente alienada. Hoje, graças inclusive às redes sociais, as ideias estão mais espalhadas, os fatos são mais difundidos. Isso não significa um movimento homossexual e sim uma decisão política da comunidade, o que é fantástico.
O GLOBO : Por outro lado, a visibilidade da homofobia aumentou?
JOÃO SILVÉRIO : Com certeza. E era de se esperar a reação. A união estável entre homossexuais não prejudica ninguém, mas existem pessoas, pelos motivos mais diversos, desde ideológicos, psicológicos, sexuais, que se incomodam. Como se estivéssemos tomando o espaço delas. É só ver a bancada religiosa e a CNBB, que acham que realmente alguma coisa muito ruim está acontecendo. Para essa gente ou para gente parecida com ela, alguma coisa muito ruim estava acontecendo quando os negros foram libertados ou quando as mulheres começaram a votar ou quando o divórcio apareceu.
O GLOBO : Assusta ver nas redes sociais, como no Twitter, a expressão de jovens homofóbicos, assim como essa agressão nas ruas ser promovida por gente tão jovem?
JOÃO SILVÉRIO : Me assusta, sim. Acho que as políticas educacionais estão sempre a reboque. As gerações tem de ser educadas dentro de um processo democrático e não um processo democrático “meia boca”. E esse processo tem de pensar as diferenças, todas as diferenças.
O GLOBO : O próximo passo é conquistar a lei anti-homofobia?
JOÃO SILVÉRIO : Certamente.
Fonte: O GLOBO