Artigos

Artigos de membros do GADvS e outros colaboradores.

Procuradoria-Geral da República defende constitucionalidade da criminalização da homotransfobia pelo STF

0

Em parecer disponibilizado no dia 25.07.2014, a Procuradoria-Geral da República opinou pelo reconhecimento do dever constitucional do Congresso Nacional criminalizar a homofobia e a transfobia, bem como pela aplicação do artigo 20 da Lei de Racismo para punir as condutas homotransfóbicas até que o Congresso Nacional efetive a criminalização específica delas.

O processo é o Mandado de Injunção (MI) 4733, movido pela ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) em maio/2012. O advogado é o constitucionalista Paulo Iotti, atual presidente do GADvS. Na ação, a ABGLT defendeu que a homofobia e a transfobia são espécies do gênero racismo, já que racismo é toda ideologia que pregue a inferioridade de um grupo social relativamente a outro, consoante decidido pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) no famoso HC 82.424/RS, que considerou o antissemitismo como espécie do gênero “racismo”, na acepção “racismo social”, ou, pelo menos, são espécies de discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais. Isso tem relevância porque a Constituição Federal ordena que o Congresso Nacional criminalize o racismo [evidentemente em todas as suas formas], bem como ordena a criminalização de toda discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLII e XLI, respectivamente). Após analisar manifestações da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, da União e da própria Procuradoria-Geral da República, o processo havia sido extinto por decisão individual do relator, Ministro Lewandowski, gerando a apresentação de recurso de agravo regimental (AgR) pela ABGLT para apreciação do tema pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).

Assim, segundo a ação e o recurso, considerando que a Constituição Brasileira é notoriamente uma “Constituição Dirigente”, aquela que impõe tarefas a serem cumpridas por Executivo e Legislativo, e considerando que o não-cumprimento destas tarefas, como as ordens de legislar, implica em situação conhecida como “inconstitucionalidade por omissão” (o responsável omite-se e não realiza aquilo que é obrigado constitucionalmente a realizar), defendeu a ABGLT que a inconstitucionalidade da não-criminalização (específica) da homofobia e da transfobia até o presente momento. Defendeu, ainda, que caso o Congresso Nacional não efetive tal criminalização após o reconhecimento desta “[de]mora inconstitucional” pelo STF, que o próprio STF efetive a criminalização. Argumentou-se na ação que, como o STF superou a exigência absoluta de lei que o Tribunal sempre viu na regulamentação da greve do serviço público civil (MI 670, 708 e 712), já que ele sempre afirmou que era indispensável e absoluta a necessidade de regulamentação por lei para o exercício de tal direito pela Constituição (no art. 37, VII) dizer que ele “será exercido nos termos e nos limites de lei específica” (p. ex., MI 20), então pode também superar a exigência absoluta de lei para efetivar a criminalização da homofobia e da transfobia. Invocou-se o próprio princípio da separação “dos poderes” (separação funcional do poder), na sua notória compreensão jurídica como “sistema de freios e contrapesos”, no sentido de que um “poder” tem que ter a possibilidade de controlar (e controlar de forma efetiva) a conduta do outro. Defendeu-se, ainda, que a “considerando que a decisão que declara a inconstitucionalidade deve sanar o vício de inconstitucionalidade, a mera declaração de mora inconstitucional configura-se como solução constitucionalmente inadequada no caso de o Congresso Nacional nada fizer após cientificado de sua inércia inconstitucional e após decorrido o prazo razoável fixado por esta Corte para ele elaborar a legislação”, razão pela qual a separação “dos poderes” enquanto sistema de freios e contrapesos justifica (ao invés de inviabilizar) a efetivação da criminalização pelo STF na situação específica de descumprimento de ordens constitucionais de legislar pelo Legislativo. De qualquer forma, forneceu-se uma opção para ter maior “deferência” ao Legislativo: determinar a aplicação de uma lei já existente (a Lei de Racismo – Lei 7.716/1989) enquanto o Legislativo não aprova lei que criminalize a homofobia e a transfobia [ou seja, ao invés de o STF criar uma criminalização absolutamente nova, usaria uma lei já existente para o caso].

Sobre o tema, o paradigmático o parecer da Procuradoria-Geral da República referendou o pleito da ABGLT, ao afirmar que: “O importante argumento da reserva absoluta de lei (princípio da legalidade estrita) em matéria penal precisa ser interpretado à luz da supremacia da Constituição, das determinações específicas de legislar para proteger a dignidade, do controle de constitucionalidade, da previsão de mecanismos processuais talhados para o enfrentamento da omissão inconstitucional (tais como o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão) e do papel do Supremo Tribunal Federal na concretização constitucional, que geram reconfiguração desse princípio. Importa, antes de tudo, a efetiva regulamentação do valor constitucional desprotegido, ainda que de modo provisório e por intermédio da jurisdição constitucional. Será então regulamentação autorizada pela Constituição, com o que restará atendido o princípio da legalidade. Será regulamentação excepcional e supletiva, com o que se respeitará o princípio da divisão funcional do poder e a primazia da conformação pelo Poder Legislativo” (pp. 16-17 do parecer).

Afirmou o parecer também que, ainda que não se concorde com isso, é possível adotar um sentido “avançado, porém ainda contido”, de “acolher o pedido de aplicação da Lei 7.716/89 (Lei de Racismo) para ‘todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima’. Tal pedido repousa na técnica da interpretação conforme a Constituição, em que o Supremo Tribunal Federal poderá adotar decisão de perfil moderadamente aditivo a partir da legislação existente. Ao tempo em que se respeita a vontade manifesta do Poder Legislativo, externada em lei vigente por ele criada, concede-se interpretação extensiva, sintonizada à realidade social” (pp. 08-09 do parecer).

(mais…)

Religião e direitos humanos

0

Fonte: Estadão.com.br

 

22 de abril de 2013 | 2h 06

 

José Reinaldo de Lima Lopes e Oscar Vilhena Vieira *

Os direitos humanos têm origem remota no discurso religioso, particularmente no cristianismo. A afirmação da fraternidade universal dos seres humanos, devida a serem todos filhos de um só Pai, e da liberdade também universal representada pelo resgate realizado pelo Salvador são uma raiz não negligenciável do longo processo em que nos inserimos. Contudo o desenvolvimento das liberdades modernas representou também uma ruptura com o passado religioso. As religiões organizadas resistiram quanto puderam ao novo ideal de autonomia dos sujeitos humanos e nos últimos 200 anos, pelo menos, opuseram-se sistematicamente, na teoria e na prática, ao avanço quer da liberdade, quer da igualdade.

No Brasil essa tensão foi subestimada porque nos anos de chumbo da ditadura certos líderes religiosos católicos, protestantes e judeus enfrentaram o arbítrio do regime militar. Se os nomes de dom Paulo, do rabino Sobel e do pastor Wright são imediatamente associados à defesa dos direitos humanos, isso não se generaliza: basta analisarmos a ambiguidade (para não dizer omissão ou conivência) da atitude de outros líderes religiosos e igrejas na América durante a última onda de autoritarismo.

Essa tensão se deve ao próprio caráter das religiões e, particularmente, de suas instituições, ou seja, das religiões organizadas. Elas pretendem ser abrangentes, potencialmente fundamentalistas ou integristas e proselitistas. Abrangentes e potencialmente integristas porque desejam incorporar todas as dimensões da vida moral de seus adeptos, de modo que se estes pertencerem a outras comunidades, não religiosas, como a comunidade política nacional, por exemplo, seus deveres para com sua religião e seus correligionários devem preceder seus deveres para com seus semelhantes que professam outro credo ou não professam credo algum, embora pertençam à mesma sociedade política. Fundamentalistas ou integristas porque almejam oferecer uma linha da qual seus adeptos não podem escapar e determinam todas as dimensões de sua vida. Proselitistas porque vivem da incorporação de novos adeptos, e não de uma sobrevivência vegetativa.

Aqui reside parte do perigo para a sociedade política. Para fazer prosélitos não temem semear divisões entre os cidadãos, e não divisões quaisquer: semeiam divisões de identidade, transferindo para a República distinções que, acreditam, serão afinal feitas pelo próprio Deus. Como pretendem ter com seu Deus um canal privilegiado de comunicação, se não ser mesmo suas representantes na Terra, antecipam no foro das instituições estatais e na legislação a separação que, supõem, a divindade fará no momento que julgar apropriado. Isso, note-se, mesmo diante de explícitas palavras, ou as palavras mesmas (ipsissima verba), de Jesus (“não julgueis…”).

A concepção de uma sociedade fundada em identidade não religiosa ou racial passou a ser inerente à própria ideia de direitos humanos. Ela tem por base a noção de que cada ser humano é moralmente livre: pode escolher seus ideais e sua forma de vida sem dar satisfações a autoridades ou vizinhos, desde que tal escolha não cause dano a outrem, ou, como dizia Thomas Jefferson em defesa da liberdade religiosa em sua Virgínia natal, “desde que não quebre minha perna nem furte minha carteira”. Tem ainda por fundamento outra noção: a de que o valor moral de todos é igual, não havendo por que discriminar moralmente quem pensa diferente, age diferente, tem uma religião diferente ou simplesmente é diferente. A igualdade universal, base do discurso dos direitos humanos, impõe que todos – independentemente de qualquer estado, escolha ideológica ou característica pessoal – recebam da autoridade pública exatamente o mesmo tratamento. Em resumo, esse ideal deixa cada um livre para perseguir seus próprios ideais absolutos, desde que não os identifique com os ideais da República.

Não foi por acaso que a afirmação dos direitos universais teve de se fazer historicamente contra as pretensões absolutas das concepções religiosas. Os direitos universais podem facilmente conflitar com as religiões porque afirmar a existência de direitos não significa apenas aceitar um sistema de conveniências políticas. Consiste numa proposta moral forte: moral crítica, pública, e não sobrenatural, tradicional ou revelada.

Na vida particular as pessoas aderem a religiões e num mundo plural como o nosso aderem a religiões diferentes. Em meio à insegurança, oferecem um importante conforto; em meio a desigualdades, diferentes religiões apelam a diferentes grupos sociais. Tendem a fazer apelos fortes. É tarefa dos líderes políticos zelar para que os mecanismos democráticos, republicanos e laicos, construídos longamente com o sacrifício de numerosas vidas, não sejam levianamente tratados por membros da mesma elite política, não sejam postos em risco por apelos populares ao sentimento de identidade homogênea. O crescimento da liberdade religiosa propicia também o crescimento dos conflitos entre religiões organizadas e o espaço público da tolerância e da liberdade. Podemos esperar que o tema volte às nossas discussões políticas com frequência.

Seria muito importante que os partidos políticos não perdessem isso de vista e educassem seus membros e simpatizantes na atividade de compreender como conviver na República com respeito e justiça, mesmo para com aqueles que julgam merecer sentar-se longe deles no esperado paraíso, ou até merecessem ir para o inferno. Certo que o sistema político está fragilizado. Mas é esperar o mínimo, e não o máximo, que em nome de nossa liberdade e igualdade se rejeitem os discursos religiosos que semeiam as divisões – e no médio prazo cultivam a violência -, primeiro morais e em seguida físicas, entre os cidadãos.

* José Reinaldo de Lima Lopes é professor associado da faculdade de Direito da USP.

* Oscar Vilhena Vieira é professor de Direito Constitucional da Direito-FGV.

MUDANÇA DE NOME E GÊNERO EM CASOS DE TRANSEXUALIDADE

0

*Por Daniel Mendes Ortolani

Quem tem a oportunidade de trabalhar com mudança de nome se surpreende diariamente com os efeitos negativos que um nome inadequado gera sobre a pessoa. Alguém pode erroneamente pensar que um nome inadequado é uma característica desimportante, e que a mudança de nome é um luxo supérfluo, mas quem assim pensa não conhece nem uma fração do sofrimento e o impacto que a inadequação do nome pode causar.

Pessoas largam seus estudos em razão da vergonha de terem seus nomes expostos em chamadas e provas orais. Frequentemente a frustração com o nome pode levar o indivíduo a quadros depressivos, e não raro, é fator importante em tratamentos psicológicos e psiquiátricos – cada vez mais e mais laudos e declarações psicológicos são juntados em ações de mudança de nome, como forma de prova do impacto negativo do nome na vida da pessoa.

Mas se para o bem e para o mal, o nome ganha tratamento jurídico especial em nosso país, sendo em regra, imutável, é razoável que existam situações em que a mudança seja possível, dada a própria natureza do nome como elemento integrante e expressão da personalidade, e de forma a proteger a pessoa dos efeitos nocivos do nome inadequado. Por essa razão a mudança de nome é possível nos casos de nomes que expõe a pessoa ao ridículo; erro de grafia; homonomia de alguém que lhe prejudica o crédito; para a inclusão de sobrenome de família omitido; como expressão da liberdade de escolha, durante o ano em que o indivíduo alcança a maioridade;  no sentido de fazer valer o nome de uso, nos casos de inclusão de apelidos notórios; e nos casos de adequação de sexo, ou seja, nos casos de transexualidade.

No caso de transexuais, o sofrimento gerado pela inadequação do nome e do gênero no registro de nascimento e demais documentos da vida civil ganha proporções ainda maiores. Entretanto, para se entender melhor essa situação, é preciso entender alguns conceitos com os quais nem todos estão familiarizados: orientação sexual e identidade de gênero.

Em termos leigos, a orientação sexual é a expressão individual da sexualidade, que indica qual o objeto da atração sexual e afetiva do indivíduo. Assim, quando falamos de orientação sexual, falamos normalmente em orientações heterossexuais e homossexuais, e, por conseguinte, em relações heteroafetivas e homoafetivas. A identidade de gênero, por sua vez, é a identificação do indivíduo com um sexo; a pessoa se sente homem ou mulher, independentemente do sexo biológico que lhe foi designado ao nascer.

Dessa forma, por exemplo, um indivíduo pode ter sexo biológico de homem, se identificar como homem, e ter orientação heterossexual; mas pode, ainda, por exemplo, ter sexo biológico homem, se identificar como homem e ter orientação homossexual. Pode ser que um indivíduo seja biologicamente homem, se identifique como mulher, e tenha orientação heterossexual; ou ser mulher, ter identificação como homem, e ter orientação bissexual. As combinações são imensas.

Existem, por exemplo, casos de pessoas que nasceram homens – ou seja, apresentaram sexo biológico masculino – mas apresentam identidade de mulheres, e são homossexuais. Casos semelhantes foram amplamente veiculados recentemente na televisão por documentários que retratavam a vida de homens, que se submeteram à cirurgia de adequação de sexo, para terem relacionamentos com mulheres.

As variações são muitas, e as matizes tanto de orientação sexual quanto de identidade de gênero são diversas. As variações da orientação sexual vão desde o indivíduo heterossexual até o homossexual, passando por configurações amplamente variáveis de bissexualidade, e até pela assexualidade. Em contrapartida, quanto à identidade de gênero, um indivíduo vai desde o masculino até o feminino, aparecendo inclusive, hoje em dia, o fenômeno do chamado “genderqueer”, indivíduo que não se identifica com nenhum dos sexos, ou com ambos, seja, em alguns casos, com uma identificação andrógina, seja transitando entre os gêneros alternadamente.

Se por um lado o Direito ainda não se dedicou ao estudo consistente da regulação civil da vida os indivíduos “genderqueers”, que é um fenômeno debatido apenas muito recentemente, cada vez mais, em contrapartida, os juristas têm estudado e refletido sobre a situação do transexual, em especial sobre o direito à cirurgia de adequação de sexo e à adequação documental civil à identidade sexual.

Não é de hoje que nossos tribunais têm autorizado a mudança de nome quando a pessoa se submete à cirurgia de adequação de sexo, ou de resdesignação sexual (conhecida popularmente como cirurgia de mudança de sexo). Porém, até pouco tempo, os juristas ensinavam que apenas a mudança de nome deveria ser autorizada, sem que fosse autorizada a alteração do gênero na documentação.

Então, por exemplo, uma pessoa nascida mulher que fizesse uma cirurgia de adequação ao sexo masculino, poderia, por exemplo, mudar seu nome de “Ana” para “Paulo”, mas continuava a ser identificada como de “sexo feminino” na certidão de nascimento e na cédula de identidade. Na melhor das hipóteses, a documentação indicava a expressão “transexual” ao invés de “sexo masculino” ou “feminino”.

Entretanto, as decisões dos tribunais estão consistentemente mudando.

Já em 2009, o Superior Tribunal de Justiça autorizou a alteração do nome e do gênero em uma ação de retificação de registro civil. Naquele caso, uma pessoa que nasceu com o sexo biológico masculino fez uma cirurgia de adequação de sexo para o feminino, e a Justiça autorizou não só a mudança de nome, mas também a mudança de gênero – ficando, portanto, o gênero identificado como de “sexo feminino” na certidão de nascimento, e ato contínuo, na cédula de identidade e demais documentos da vida civil.

Em 2012, algumas decisões de primeira e segunda instância autorizaram a mudança do nome antes mesmo da realização cirurgia de adequação de sexo. Importante notar que os advogados e juízes que trabalharam nesses casos reservaram a mudança de gênero na documentação para só após a cirurgia.

Como os tribunais superiores vão se posicionar a respeito da retificação documental do nome e gênero prévia à realização da cirurgia ainda é uma incógnita, ainda mais nos casos em que o transexual tem de fato uma identificação de gênero diversa da biológica mas se reserva ao direito de não realizar o procedimento cirúrgico (que, no final das contas, é um procedimento médico com todos os riscos hospitalares típicos de qualquer cirurgia).

Com relação à proteção dos “genderqueers”, só tempo dirá. Mas é identificável uma tendência social (não necessariamente já identificável juridicamente) cada vez mais inclusiva tanto para a situação dos transexuais, quanto para a dos “genderqueers”, e historicamente o Direito acompanha a sociedade, ainda que com defasagem de tempo.

* Dr. Daniel Mendes Ortolani é advogado atuante nos ramos do Direito Civil, Empresarial e Tributário, autor de diversos artigos, e formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. E-mail: daniel@ortolani.com.br .

Fonte: União Homoafetiva

Proteção de toda a família humana

0

 

Fonte: Folha de São Paulo

 

| É um ultraje que mais de 76 países sigam criminalizando a homossexualidade. Líderes deveriam enfrentar e não ceder ao preconceito |

 

Acabamos de comemorar os 64 anos de um documento que nasceu em dezembro de 1948 e mudou para sempre a visão de como tratamos os membros da família humana.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos provocou uma mudança fundamental no pensamento global, afirmando que todos os seres humanos, não alguns, não a maioria, mas todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

A luta para concretizar os ideais da declaração é o cerne da missão das Nações Unidas. A comunidade internacional tem construído um forte histórico de combate ao racismo, promoção da igualdade de gênero, proteção das crianças e quebra das barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência.

Enquanto alguns velhos preconceitos estão diminuindo, outros permanecem. Em todo o mundo, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) são agredidos, às vezes mortos. Mesmo crianças e adolescentes são insultados por seus pares, espancados e intimidados.

Pessoas LGBT sofrem no trabalho, em clínicas e hospitais e nas escolas -os mesmos lugares que deveriam protegê-los. Mais de 76 países continuam criminalizando a homossexualidade.

Muitas vezes já falei contra esta trágica e injusta discriminação, e os desenvolvimentos positivos dos últimos anos me encorajam a seguir lutando. Foram realizadas reformas em muitos países. Na ONU, tivemos inovações históricas.

Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos adotou a primeira resolução da ONU sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero, expressando “grave preocupação” com a violência e a discriminação contra as pessoas LGBT.

A alta comissária publicou o primeiro relatório da ONU sobre o problema e o conselho discutiu os resultados em 2012 -a primeira vez que um organismo da ONU fez um debate formal sobre o assunto. Os ativistas ajudaram a abrir a porta. Não podemos deixar que se feche.

É um ultraje que tantos países continuem criminalizando as pessoas só por amar outro ser humano do mesmo sexo. Em alguns casos, novas leis discriminatórias estão sendo criadas. Em outros, essas leis foram herdadas das potências coloniais. Leis enraizadas em preconceitos do século 19 estão enchendo o século 21 de ódio.

Quando me encontro com líderes de todo o mundo, levanto a minha voz e peço igualdade para os membros LGBT de nossa família humana. Muitos líderes dizem que gostariam de poder fazer mais, mas apontam a opinião pública como uma barreira para o progresso. Eles também citam as crenças religiosas e os sentimentos culturais.

Respeito plenamente os direitos dos povos em acreditar nos ensinamentos religiosos que escolheram. Isso também é um direito humano. Mas não pode haver desculpa para violência ou discriminação, nunca.

Entendo que pode ser difícil se levantar contra a opinião pública. Mas só porque a maioria desaprova determinados indivíduos, não dá direito ao Estado de reter seus direitos básicos.

A democracia é mais do que a regra da maioria. Ela exige defesa das minorias vulneráveis diante de maiorias hostis. Os governos têm o dever de desafiar o preconceito, não ceder a ele.

Todos temos um papel a desempenhar. Desmond Tutu disse recentemente que a onda da mudança é feita de até um milhão de ondulações. Ao celebrarmos os direitos humanos, vamos mais uma vez lutar pela implementação da promessa da Declaração Universal: que eles sejam para todas as pessoas -como foi planejado.

 

BAN KI-MOON, 68, diplomata sul-coreano, é secretário-geral da ONU

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

 

É legítimo o projeto de lei que criminaliza o preconceito

0

 

Por Pierpaolo Cruz Bottini

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2012

 

O meio acadêmico discute atualmente a adequação ou a oportunidade do Projeto de Lei 122, que criminaliza a homofobia. Natural, portanto, uma reflexão sobre o assunto.

Caio Prado Jr. dizia que todo povo tem na sua evolução, vista a distância, um certo sentido. O Direito Penal é o retrato fidedigno desse sentido evolutivo, pois ao apontar os comportamentos menos tolerados acaba por revelar os valores sociais mais prezados. Assim, a lei penal só será legítima se proteger bens jurídicos derivados desses valores constitutivos da ordem social.

Os valores que fundamentam a ordem política e social brasileira estão previstos na Constituição: a dignidade humana e o pluralismo, de forma que a espinha dorsal da política criminal brasileira é a proteção de bens que promovam a autodeterminação do indivíduo.

A discriminação, por sua vez, é a antítese da dignidade e a negação do pluralismo. Por isso, a linha da política criminal brasileira é o progressivo combate ao preconceito, seja racial (Lei 7.716/89), por motivos religiosos (artigo 280 do Código Penal), ou por outras razões. O Projeto de Lei 122 segue essa tendência, vedando a discriminação pela opção sexual porque tal conduta afeta a autonomia do indivíduo ao negar-lhe liberdade para construção de seu mundo de vida. A realização da justiça, como diz Honneth, depende da proteção de um contexto social de reconhecimento recíproco, e esse contexto é incompatível com o discurso discriminatório.

É verdade que a opção pela repressão penal nem sempre é a melhor alternativa. O uso de políticas de educação e conscientização deve preceder à criminalização, a não ser que tais instrumentos mostrem-se incapazes para evitar determinados comportamentos. Porém, a constatação da UNAIDS, de que a cada três dias um homossexual é morto no mundo, e as estatísticas brasileiras de 100 homicídios anuais por homofobia revelam as razões do legislador para o uso do Direito Penal.

A lei penal, nesse caso, não tem finalidade pedagógica, não visa ensinar a tolerância e o convívio — finalidade alcançada por outros mecanismos, como a educação — mas apenas impedir que sejam negados direitos a determinados grupos sociais. Por isso, a lei não criminalizará apenas o preconceito quanto à opção sexual, mas também punirá a discriminação pela religião, origem, idade, sexo ou gênero, com as mesmas penas previstas para a segregação racial.

Pode-se questionar a quantidade de pena proposta, que equipara a discriminação à lesão corporal grave em alguns casos, em evidente desproporcionalidade, mas a definição do bem jurídico e a técnica legislativa estão de acordo com os princípios constitucionais vigentes.

Alguns criticam a proposta por seu eventual conflito com a liberdade de expressão. No entanto, a liberdade de expressão — que é a faculdade do indivíduo manifestar seu pensamento sem censura prévia — não isenta o manifestante de responsabilidade civil ou criminal se o conteúdo das expressões violar a honra de alguém ou incitar o ódio contra determinados grupos sociais. As manifestações contrárias ou favoráveis a ideias fazem parte do convívio democrático, mas a exclusão social daqueles que optam por determinado culto, religião, ideologia, ou opção sexual, atenta contra o pluralismo e a dignidade humana, o que autoriza a intervenção penal e legitima o projeto de lei em discussão.

 

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.

 

Nome e Sexo – entrevista com Tereza Rodrigues Vieria

0

 

Fonte: Jornal Carta Forense

 

 

 

Antes de entrarmos na parte jurídica, poderia nos falar um pouco sobre a transexualidade?

Sim, transexualidade ou transtorno de identidade de gênero é uma condição em que a pessoa possui o sexo biológico masculino, por exemplo, e  o sexo psicológico feminino, ou seja, sexo e gênero discordantes. Trata-se de condição desarmônica e profundamente desconfortante, pois é desejo do transexual  viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Tal matéria no Brasil é regulamentada apenas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), através de resoluções. Atualmente, está em vigor a Res.n. 1.955, de 2010, a qual caracteriza a transexualidade como: 1) Desconforto com o sexo anatômico natural; 2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4) Ausência de outros transtornos mentais.

 

Quais são os critérios para autorizar o paciente à mudança de sexo?

No Brasil, a cirurgia está autorizada desde 1997 e, hoje, de acordo com a Resolução do CFM  n.1955/2010, só poderá ser realizada após a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto, obedecendo os seguintes critérios :1) Diagnóstico médico de transgenitalismo; 2) Maior de 21 anos; 3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia. As cirurgias podem ser realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), conforme autoriza a Portaria n.º 457, da Secretaria de Atenção à Saúde.

 

Para ser autorizada a mudança de prenome e sexo no registro civil, é obrigatório a intervenção cirúrgica  transgenital?

Eu entendo que não, uma vez que a transexualidade está na mente e não no corpo. Um prenome masculino para alguém feminino é ridículo(e vice-versa), e tal alteração já é permitida para qualquer pessoa, independente da sua identidade de gênero. Sentir-se, trajar-se, comportar-se como mulher e possuir documentação masculina, por exemplo, impede a inserção social e profissional, ferindo sua dignidade enquanto pessoa.

A adequação do nome e sexo para aquele em que o indivíduo é mais funcional em nada prejudica terceiros, pois o número dos documentos continuará os mesmos. 

 

Qual a natureza jurídica da alteração de nome e sexo?

Entendo ser um direito da personalidade. O direito à busca do equilíbrio corpo-mente do transexual, ou seja, à adequação do sexo e prenome, está ancorado no direito ao próprio corpo, no seu direito à imagem, no direito à saúde e, principalmente, no direito à identidade sexual em conformidade com sua identidade de gênero, a qual integra importante aspecto da identidade pessoal.

 

Qual o critério para adoção do prenome? O prenome anterior passa para o feminino/ masculino ou a escolha é livre?

A escolha é livre. Ademais, há nomes que não encontram correspondentes em outro gênero (ou não soam bem quando se referem ao outro sexo). Ex. Adalberto, Milton, William, Rômulo, Ana, Eliane, Priscila etc.

 

Qual a situação da legislação nacional para o assunto? Quais são as normas existentes?

Não existe lei específica sobre o assunto no Brasil. Contudo, ausência de lei não significa ausência de justiça.  Entendo que alguns dispositivos legais existentes reconhecem, indiretamente, o direito a adequação do sexo e do prenome, tais como: art. 13 e art. 21 do  Código Civil; art. 1, inciso III, art. 3º, inc. I e IV, art. 5º, inc. X, art. 196 e art. 205, todos da Constituição Federal; artigos 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas de Direito; arts. 55 e 58 da Lei dos Registros Públicos e, na jurisprudência que autoriza mudar o nome ridículo.  Prenomes masculinos são ridículos quando aplicados a pessoas do gênero feminino. Igualmente, colaboram a Portaria n.º 1.707 do Ministério da Saúde (2008) , o art. 2 da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos humanos (1997), os arts. 10, 11 e 12 da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (2005) e a Resolução n.1.955 do Conselho Federal de Medicina (2010).

 

Como o assunto é tratado pelo Direito Comparado?

Para a elaboração da minha tese de doutorado, defendida em 1995, realizei pesquisas em 14 países, enquanto estudava na Universidade de Paris, pois no direito comparado existe uma forte corrente favorável ao reconhecimento do direito à adequação do nome e do sexo do transexual, seja por via administrativa, judiciária ou legislativa.  

Na Dinamarca estas intervenções cirúrgicas são realizadas desde 1952. No Brasil, a primeira cirurgia foi realizada em 1971 pelo saudoso cirurgião plástico Roberto Farina. Hoje, ainda são poucos os cirurgiões aptos a realizá-las no Brasil.

Suécia, Alemanha, Holanda, Itália, Portugal, Argentina possuem leis específicas sobre o assunto.  Certos estados dos Estados Unidos e do Canadá consagram os direitos dos transexuais. Por outras vias, igualmente o reconhecem: Dinamarca, Finlândia, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, Suíça, Turquia,  França, Peru,  Colômbia, Uruguai etc. Ressalte-se aqui que a Argentina possui a lei mais avançada do mundo, onde não há necessidade de cirurgias para adequação do nome e sexo, bastando o indivíduo dirigir-se ao Cartório com o pedido. Menores também podem alterar, desde que autorizado pelos responsáveis legais. Outros países o reconhecem, mas há necessidade de ação judicial, como é o caso do Brasil. 

 

Poderiam os transexuais, após a cirurgia, se casar?

Claro. Como qualquer pessoa, o transexual também deseja se unir a alguém com o intuito de constituir uma família. A incapacidade de procriação não pode ser considerada um empecilho, visto que não constitui uma das condições de validade do casamento. Há que se lembrar que hoje, é possível também o casamento de pessoas do mesmo sexo. A base principal do casamento é o amor e não o sexo. A sexualidade só interessa ao casal.

 

É possível a anulação caso o Cônjuge desconheça a transexualidade anterior do consorte?

É uma questão delicada para a qual ainda não há uma resposta segura. Em geral, ao iniciar um namoro firme, o transexual já declara ao futuro cônjuge que não pode ter filhos. Há que se verificar se houve ou não induzimento a erro, ou seja, se o consorte havia indagado e o ex-transexual negado a suspeita. As pessoas são iguais, independentemente da orientação sexual ou da identidade de gênero. Se houve só um namoro virtual, por exemplo, e depois o casamento, acho até possivel anular, dependendo das circunstâncias.

Se o transexual conhecia o preconceito do futuro cônjuge sobre o assunto e, mesmo assim, contraiu matrimônio, escondendo sua condição anterior, entendemos que faltou com a verdade. Se aquele cônjuge soubesse da transexualidade talvez não tivesse se casado. Para ele pode ser algo essencial e sua opinião deve ser respeitada. Em qualquer união deve ter ética entre os enamorados e ninguém tem o direito de ocultar algo que o outro repute grave. Alegar que a genitália é ou não original, por vezes, é apenas uma desculpa, quando o casamento já não anda bem.

Cabe ao transexual a liberdade de informar ao cônjuge sua condição, pois não seria correto compeli-lo a confidenciar algo pessoal. Não deve o legislador intervir nessa liberdade, entretanto, o transexual que dissimulou sua condição deverá responder por sua omissão.

Contudo, se os nubentes tiveram relações sexuais antes do casamento e o consorte nunca notou nenhuma diferença, indagamos: qual a importância em saber se a pessoa nasceu daquela forma ou não? Há pessoas que realizam cirurgias faciais, mudam inteiramente o rosto, ou realizam cirurgias bariátricas enquanto solteiras e jamais revelam ao cônjuge. O estado atual é mais importante que o passado, vez que tais cirurgias são permitidas pelo Conselho Federal de Medicina.

A identidade de gênero não foi uma opção do transexual. No entanto, deverá suportar as consequências da não revelação, quando o momento requisitar. Contudo, na maior parte dos casos, é mais fácil que haja o divórcio que a anulação.

 

O que vem a ser o nome social, e como o poder público vem lidando com o tema?

Nome social é aquele usado pelo indivíduo, diferente do constante no registro de nascimento.

Diversos decretos, resoluções, portarias etc autorizam o uso do nome social por travestis e transexuais, de acordo com sua identidade de gênero, antes do reconhecimento judicial.

A quase totalidade dos estados da federação já permite o uso do nome social.  São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Bahia, Maranhão, Goiás,  Pará, Tocantins,  Rio Grande do Sul , Rio Grande do Norte, Santa Catarina, Piauí, Paraíba,  Rio de Janeiro, Alagoas, Distrito Federal, Roraima, Mato Grosso, Pernambuco, Espírito Santo autorizam mas, há diferenças na abrangência. Em alguns, o nome social é aceito só na rede de ensino público, em outros na área da saúde, executivo etc.

No Estado de São Paulo, transexuais e travestis têm o direito a escolha do nome pelo qual querem ser tratados no preenchimento de cadastros ou se apresentar para atendimento. O decreto nº. 55.588/2010, autoriza tratamento pelo nome social  nos órgãos públicos. Ex. posto de saúde ou delegacia. O servidor público  deve cumprir o decreto sob pena de ser processado.

O Município de São Paulo, por sua vez, possui o decreto 51.180 (14.01.2010), que permite o uso do nome social em formulários, prontuários médicos e fichas de cadastro, entre outros requerimentos da administração pública. O nome social aparece antes do nome civil e  entre parênteses  nos registros municipais.

Desde  14 de Janeiro de 2011,  a  Universidade de São Paulo (USP) passou a adotar a Lei Estadual 55.588/2010,  aceitando o uso do nome social de alunos e alunas travestis e transexuais em seus documentos acadêmicos.

O  Ministério do Planejamento, através da Portaria n. 233/2010, assegura  aos servidores públicos, no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, o uso do nome social adotado por travestis e transexuais.

O Ministério da Educação,  através da Portaria nº 1.612/2011, reconhece o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos aos agentes públicos deste Ministério, cabendo às autarquias vinculadas a esta Pasta a regulamentação da matéria dentro da sua esfera de competência.

A Portaria nº 1.820/ 2009, do Ministério da Saúde dispõe que  é direito da pessoa, na rede de serviços de saúde registrar o nome social, independente do registro civil, sendo assegurado o uso do nome de preferência. Desde 2009, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, através da Resolução Cremesp Nº. 208, permite o nome social e dispõe sobre o atendimento médico integral à população de travestis, transexuais e pessoas que apresentam dificuldade de integração ou dificuldade de adequação psíquica e social em relação ao sexo biológico.

O Conselho Federal de Psicologia, desde 20.07.2011, autoriza o uso do nome social na Carteira de Identidade Profissional. A decisão inclui outros documentos, como relatórios e laudos. O nome será adicionado no campo de Observações do Registro Profissional.

O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS),  através da Resolução N° 615/2011 também autoriza o nome social para os assistentes sociais.

 

No seu entendimento como está andando a jurisprudência em relação ao tema?

Felizmente, depois que defendemos nossa tese em 1995, e começamos a dar publicidade aos nossos estudos sobre transexualidade, paulatinamente, os doutrinadores bem como os nossos julgadores passaram a entender melhor o desconforto e o constrangimento reconhecendo a contribuição da adequação dos documentos para a inserção social do transexual. A jurisprudência vem se mostrando inteiramente favorável ao reconhecimento da adequação do Registro Civil, adequando o nome e o sexo, inclusive sem a realização de todas as cirurgias. Nos dias atuais, é muito raro se ter notícia do indeferimento de algum pedido.

Hoje, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é no sentido de não constar nenhuma menção da mudança na Certidão de Nascimento, apenas no Livro de Registro, que fica no Cartório, respeitando o princípio da dignidade da pessoa humana.

Das 98 ações que propusemos, em apenas 3 tivemos que recorrer e ganhar no Tribunal de Justiça. Antes do ano 2000, em uma delas a parte preferiu não recorrer, pois só o promotor havia sido favorável e em outra a parte desistiu antes da sentença. Todos os demais casos ganhamos já em primeira instância. Nossos julgadores hoje acompanham mais o desenvolvimento da sociedade, não se vinculando mais a conceitos ultrapassados e já superados pelo dinamismo da vida. As decisões devem expressar a realidade. O indivíduo deve ser livre para desenvolver sua personalidade, sem lesões à sua dignidade, vivendo e sendo respeitado por todos, de acordo com sua identidade de gênero. Afinal, todos temos o direito à felicidade.

 

TEREZA RODRIGUES VIERIA

Tereza Rodrigues Vieria

Advogada. Pós-doutora pela Universidade de Montréal/ Canadá, Doutora e Mestre pela PUC/SP. Professora de Biodireito e Tutela Jurisdicional das Minorias no Mestrado da Universidade Paranaense-UNIPAR. Integrante da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB para elaboração do Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual. Autora do livro: Nome e Sexo, pela Editora Atlas.

União estável poliafetiva: breves considerações acerca de sua constitucionalidade

0

 

Elaborado em 10/2012.

Fonte: Jus Navigandi

A família conjugal poliafetiva que não gere opressão a nenhum de seus integrantes deve ser reconhecida e protegida pelo Estado Brasileiro, por força do princípio da pluralidade de entidades familiares e da ausência de motivação lógico-racional que justifique a negativa de reconhecimento.

Foi noticiado em 21/08/2012 que foi lavrada uma escritura de união estável poliafetiva entre um homem e duas mulheres na cidade de Tupã/SP, na qual a Nobre Tabeliã asseverou a ausência de proibição legal e a influência dos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da liberdade para justificar a juridicidade de tal escritura[1]. Desde então alguns escritos foram divulgados na internet comentando o fato – ressalvada a posição sempre vanguardista de Maria Berenice Dias (na notícia supra citada), em geral tem sido negada juridicidade a tal escritura, por considerada como contrária ao ordenamento jurídico pela consideração de seus defensores de que a família brasileira teria “natureza monogâmica”[2].

Um dos argumentos utilizados foi o de que, tendo os textos normativos relativos ao casamento civil e à união estável[3] utilizado a expressão “entre o homem e a mulher”, eles teriam limitado a família conjugal [juridicamente protegida] somente à união entre duas pessoas, donde não seria possível reconhecer uma união estável entre mais de duas pessoas, pela “ausência de flexão plural dos substantivos”[4]. Contudo, esse é um argumento muito fraco, pois ignora a lição de Direito Civil Clássico segundo a qual o fato de o texto normativo regulamentar um fato sem nada dispor sobre outro configurar lacuna normativa colmatável por interpretação extensiva ou analogia caso as situações sejam idênticas ou, caso diferentes, sejam idênticas no essencial, respectivamente (e não uma “proibição implícita”). Logo, o fato de o art. 226, §3º, da CF/88 ter regulamentado a união estável entre duas pessoas não significa que teria ele negado proteção à união estável entre mais de duas pessoas[5] – a qual, se caracterizada como entidade familiar, merecerá os mesmos direitos da união estável tradicional, por analogia.

Outro argumento anota que, se a bigamia é proibida (e inclusive constitui crime) e, portanto, se não é possível o reconhecimento da família conjugal matrimonializada entre mais de duas pessoas, também não o seria o da família conjugal não-matrimonializada polígama/poliafetiva. Parece-me que o argumento seria decorrente de interpretação lógica – pela lógica da proibição legal à bigamia, a poligamia e a união estável polígama/poliafetiva também estaria proibida. Embora Berenice tenha apontado na citada manifestação que a lei restringe a bigamia somente ao casamento civil e não à união estável, cabe reconhecer que este argumento, embora questionável, tem uma boa consistência legal (infraconstitucional) se nos pautarmos pela isonomia que deve existir entre casamento civil e união estável. Entendo, todavia, que essa “interpretação lógica” é superável pela consideração de que o rol de entidades familiares do art. 226 da CF/88 é meramente exemplificativo, não taxativo, de sorte ser juridicamente possível o reconhecimento de entidades familiares autônomas, além daquelas previstas nos parágrafos de dito dispositivo constitucional, o que a doutrina contemporânea isto reconhece com relativa tranquilidade, destacando-se aqui a já clássica lição de Paulo Lôbo[6], que afirma que o fato de o caput do art. 226 da CF/88 afirmar que a família merece especial proteção do Estado e não mais que a família é constituída pelo casamento e terá proteção dos Poderes Públicos (como fazia o art. 175 da CF/67-69) significa que resta protegida qualquer família, ou seja, todo agrupamento humano que se enquadre no conceito material (ontológico) de família (e não mais apenas a família matrimonializada), o que faz com que Rodrigo da Cunha Pereira[7] afirme que o caput do art. 226 consagrou o princípio da pluralidade de entidades familiares (em suas palavras, “princípio da pluralidade das formas de família”).

Nesse sentido, considerando que a família se forma pelo que denomino como amor familiar, ou seja, o amor que vise a uma comunhão plena de vida de forma pública, contínua e duradoura[8] [amor romântico/conjugal, neste caso], ou, consoante afirmado pelo Ministro Fux[9] no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, que

“O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional”

ou ainda, na também já clássica lição de Paulo Lôbo[10], que a família se forma pela conjunção dos elementos da afetividade, da estabilidade, da publicidade e da ostensibilidade, aos quais Rodrigo da Cunha Pereira[11] acrescenta o requisito da estruturação psíquica, ou seja, a identificação recíproca de seus integrantes enquanto uma família[12] pelo fato de cada um nela ocupar um lugar, uma função enquanto elemento que liga todos os demais (família esta que, portanto, não se constitui só de afeto, mas de afeto ligado à publicidade, continuidade, durabilidade e ao intuito de constituição de família existente da união), tem-se que a união estável poliafetiva se enquadra no conceito ontológico de família e deve ser assim reconhecida.

Dessa forma, considerando que o princípio da igualdade veda diferenciações jurídicas desprovidas de fundamentação lógico-racional que as justifiquem com base nos critérios diferenciadores erigidos[13], entendo que é inconstitucional a criminalização da bigamia[14] e também inconstitucional o impedimento matrimonial ao casamento civil com pessoa casada[15] quando o outro cônjuge com isto consentir, por inexistente motivação lógico-racional que justifique a negativa de reconhecimento jurídico às famílias conjugais poliafetivas que não gerem a opressão de um cônjuge relativamente ao(s) outro(s). Faz-se essa ressalva (que não gerem opressão) porque se tem notícia ao longo da história de famílias poligâmicas nas quais o homem oprime suas mulheres – mas cabe lembrar que a opressão da mulher na família conjugal também aconteceu até bem pouco tempo nas famílias conjugais monogâmicas do mundo ocidental, só tendo acabado (normativamente) no Brasil com o advento da Constituição Federal de 1988 (até então pode-se afirmar que a mulher, de prisioneira do pai, passava a prisioneira do marido, já que sempre estava submetida à vontade despótica de um homem[16], tanto que deixava de ter capacidade civil plena para se tornar relativamente capaz com o casamento civil – monogâmico[17]), ao passo que a violência doméstica contra a mulher é um mal que ainda assola as famílias conjugais monogâmicas no mundo atual (tanto que teve que ser aprovada a Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 – para se reprimir com maior rigor a violência doméstica praticada contra a mulher, cuja alta incidência justificou o reconhecimento de sua constitucionalidade pelo STF com base na igualdade material no julgamento da ADC 19).

Por outro lado, considero extremamente injusta a afirmação de que uma união estável poliafetiva seria um estelionato jurídico, que seu reconhecimento violaria a dignidade das pessoas envolvidas e ajudaria a destruir a família por supostamente se tratar de uma relação “propícia” a deixar “mazelas” em seus integrantes[18], pois uma tal afirmação: (i) implica em uma descabida naturalização da monogamia como “única” forma “aceitável/digna/válida/viável” de família conjugal; (ii) desconsidera que pelo menos para algumas pessoas a poliafetividade é capaz de trazer satisfação/realização e felicidade a seus integrantes; e (iii) ignora as diversas mazelas e opressões praticadas contra a mulher em famílias conjugais monogâmicas/monoafetivas ao longo da história (já que claramente presume que a monogamia seria o único paradigma válido/digno/aceitável/viável de relacionamento conjugal…). Não cabe ao Estado nem a quem quer que seja impedir que as pessoas adultas formem entre si famílias conjugais com quem desejem e/ou com quantas pessoas desejarem quando tal situação não implicar opressão de um ou de alguns de seus integrantes, não trouxer prejuízos a terceiros e/ou quando não haja fundamento lógico-racional que isto justifique[19] (fundamento este que há para o não-reconhecimento da família conjugal em uma situação de pedofilia, por exemplo, já que temos aqui pelo menos uma pessoa em desenvolvimento que ainda não atingiu a plena capacidade civil – cabendo lembrar, todavia, que a legislação reconhece como possível o casamento de adolescentes com mais de dezesseis anos com adultos se houver autorização dos pais – art. 1.517 do CC/02).

Fato é que ou se apresenta uma fundamentação válida ante a isonomia que justifique de maneira lógico-racional a diferenciação pretendida com base no critério diferenciador erigido ou então todos os agrupamentos humanos que se enquadrem no conceito ontológico de família supra exposto merecerão referida proteção do Estado, por mais que o moralismo dominante disto não goste (e desconheço ter sido uma tal fundamentação apresentada até o momento contra a família conjugal poliafetiva) – pois, como bem afirmado pela Suprema Corte dos EUA nos casos Romer v. Evans e Lawrence v. Texas, o mero moralismo majoritário não constitui justificação válida ante a isonomia para diferenciações jurídicas, pois, segundo o primeiro, a mera animosidade e/ou o mero desejo de prejudicar um grupo politicamente impopular não constitui um legítimo interesse governamental[20] – ou seja, não é um fundamento lógico-racional que isto justifique –, afirmando o segundo que a “Liberdade presume uma autonomia de si próprio que inclui a liberdade de pensamento, de crença, de expressão e de certas condutas íntimas”[21]. Ou, como a mesma Corte afirmou em Planned Parenthood of Southeast Pennsylvania v. Casey, “Nossa obrigação é definir a liberdade de todos, não impor o nosso código moral”, pois “No coração da liberdade está o direito de a pessoa definir seu próprio conceito de existência, de significado, de universo e do mistério da vida humana”[22], o que supõe [acrescento] a garantia de igual respeito e consideração a seu modo de ser e viver quando ele não traga prejuízos a terceiros, que inexistem no caso da união estável poliafetiva, donde ela se configura como conduta íntima que não pode ser menosprezada pelo Estado, que deve, portanto, reconhece-la em igualdade de condições com a união estável monoafetiva (monogâmica).

Em suma, a despeito de jurisprudência contrária do STJ e do STF à possibilidade jurídica de uniões estáveis paralelas (que diferem das poliafetivas, que não são “paralelas”, pois formam uma única união), a família conjugal poliafetiva que não gere opressão a nenhum de seus integrantes deve ser reconhecida e protegida pelo Estado Brasileiro, por força do princípio da pluralidade de entidades familiares oriundo da interpretação do caput do art. 226 da CF/88 e da ausência de motivação lógico-racional que justifique a negativa de reconhecimento à mesma (isonomia), o que deve ensejar, inclusive, a declaração da inconstitucionalidade do crime de bigamia e do impedimento matrimonial ao casamento civil com pessoa já casada (quando isto seja de plena concordância do outro cônjuge, claro) – argumentos estes que, ao que me consta, ainda não foram considerados pelo STJ e pelo STF.


Bibliografia

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 5.ª Edição Alemã, 1.ª Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

ROSALINO, Cesar Augusto. União poliafetiva: ousadia ou irresponsabilidade?. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3344, 27 ago 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22501>. Acesso em: 8 out. 2012.

SILVA, Regina Beatriz Tavares da. ‘União poliafetiva’ é um estelionato jurídico. In: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI165014,81042-Uniao+poliafetiva+e+um+estelionato+juridico (acesso em 11 ou. 2012)

LÔBO, Paulo. Famílias. 1ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2008.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3.ª Edição, 11.ª Tiragem, Maio-2003, São Paulo: Malheiros Editores.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família, 1ª Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2005.

RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Da Constitucionalidade e da Conveniência da Lei Maria da Penha. Clubjus, Brasília-DF: 04 mar. 2008. Disponível em: <http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.16187>. Acesso em: 08 out. 2012.

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 1ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2008.


Notas

[1] Cf. http://www.conjur.com.br/2012-ago-26/advogado-uniao-poliafetiva-nao-inconstitucional (acesso em 08.10.12).

[2] Cf. ROSALINO, Cesar Augusto. União poliafetiva: ousadia ou irresponsabilidade?. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3344, 27 ago 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22501>. Acesso em: 8 out. 2012; SILVA, Regina Beatriz Tavares da. ‘União poliafetiva’ é um estelionato jurídico. In: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI165014,81042-Uniao+poliafetiva+e+um+estelionato+juridico; http://www.conjur.com.br/2012-ago-26/advogado-uniao-poliafetiva-nao-inconstitucional (matéria da Revista Consultor Jurídico nominada “Advogado diz que união estável poliafetiva não é inconstitucional” – contudo, apesar do título, a posição [atribuída ao advogado Erick Wilson Pereira] é dúbia, pois afirma que é possível o registro pelo Estado não poder intervir na família, mas afirma que “no Brasil a união afetiva tem natureza poligâmica”). Acesso em 08.10.12.

[3] Art. 226, §§3º e 5º, da CF/88, art. 1.514 e 1.723 do CC/02 e, antes deste último, art. 1º da Lei 9.278/96.

[4] Cf. ROSALINO, Op. Cit.

[5] Na ADPF 132 e na ADI 4277, o Ministro Gilmar Mendes afirmou, com precisão que “O fato de a Constituição proteger, como já destacado pelo eminente Relator, a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção – nem poderia ser – à união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo” (p. 44 do voto). Afirmei praticamente o mesmo em minha sustentação oral neste julgamento, ao afirmar que dizer que é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher não é o mesmo que dizer que ela é reconhecida apenas entre o homem e a mulher, donde, como o “apenas” não está escrito, não há limite semântico no texto que impeça a exegese inclusiva da união homoafetiva no conceito constitucional de união estável por interpretação extensiva ou analogia – cf. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O STF e a união estável homoafetiva. Resposta aos críticos, primeiras impressões, agradecimentos e a consagração da homoafetividade no Direito das Famílias. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2870, 11 maio 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19086>. Acesso em: 8 out. 2012.

[6] LÔBO, Paulo. Famílias. 1ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 60-61.

[7] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família, 1ª Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2005, pp. 165-168.

[8] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 1ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2008, pp. 196-211 (“2.4.1. O Amor Familiar como o Elemento formador da Família Contemporânea”).

[9] ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Luiz Fux, p. 13-14.

[10] LÔBO, Op. Cit., pp. 57-58.

[11] PEREIRA, Op. Cit., pp. 181-182. Em sua lição, o autor explica, com base em Lacan, que a família “não se constitui apenas de pai, mãe e filho, mas é antes uma estruturação psíquica em que cada um de seus membros ocupa um lugar, uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente” (Op. Cit., pp. 165-166), donde se conclui que a estruturação psíquica familiar se caracteriza pela identificação recíproca de seus integrantes enquanto uma família.

[12] Cabe lembrar que o art. 5º, II, da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) reconhece como entidade familiar a união de pessoas que se consideram aparentadas por vontade expressa, de sorte a termos, inclusive, fundamento normativo para garantir referido conceito ontológico/material de família na atualidade.

[13] Cf., v.g., MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3.ª Edição, 11.ª Tiragem, Maio-2003, São Paulo: Malheiros Editores, pp. 38-39, ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 5.ª Edição Alemã, 1.ª Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, pp. 407-409, RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 53-54, e VECCHIATTI, Op. Cit., p. 118.

[14] Art. 235 do CP, bem como, por consequência lógica, todos os outros que se refiram à bigamia como crime (inconstitucionalidade parcial caso se refiram também a outras questões).

[15] Art. 1.521, inc. VI, do CC/02.

[16] Desenvolvi este argumento em VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Da Constitucionalidade e da Conveniência da Lei Maria da Penha. Clubjus, Brasília-DF: 04 mar. 2008. Disponível em: <http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.16187>. Acesso em: 08 out. 2012.

[17] Cf. Art. 6º, inc. II, do CC/1916, segundo o qual “São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer: […] II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal”, situação que só se alterou com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962), que acabou com essa absurda diminuição de capacidade civil da mulher durante o casamento civil (monogâmico, cabe lembrar).

[18] Cf. SILVA, Op. Cit.

[19] Tanto que se fala em princípio da mínima intervenção do Estado, no sentido de que “A intervenção do Estado deve apenas e tão-somente ter o condão de tutelar a família e dar-lhes garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e de que seus membros vivam em condições propícias à manutenção do núcleo afetivo”, cf. PEREIRA, Op. Cit., p. 157. Embora o autor, páginas antes, defenda a monogamia como princípio jurídico (Op. Cit., pp. 106-126), ele não apresenta uma fundamentação lógico-racional que justifique a qualificação do suposto princípio ordenador da monogamia (sic) como necessário para se manter a organização jurídica sobre a família e para o desenvolvimento da civilização – ele o defende como tal sem, contudo, demonstrar a pertinência de tal afirmação; afinal, dizer que “o desenvolvimento da civilização impõe restrições ao instinto e ao desejo” (p. 113) não explica porque especificamente o instinto/desejo poliafetivo precisaria ser restrito para a existência ou manutenção/desenvolvimento da nossa civilização; não explica porque a monogamia seria um “interdito viabilizador da organização da família” (p. 110), razão pela qual sua posição não pode ser aceita neste ponto por não apresentar fundamentação válida ante a isonomia a justificar a discriminação à família conjugal poliafetiva decorrente de sua lição.

[20] Tradução livre – neste trecho a Suprema Corte dos EUA se baseou no caso Department of Agriculture v. Moreno.

[21] Tradução livre.

[22] Tradução livre.

 

O STJ e o Casamento Civil Homoafetivo – Participação em um Julgamento Histórico

0

O STJ e o Casamento Civil Homoafetivo

Participação em um Julgamento Histórico

Paulo Roberto Iotti Vecchiatti1

No dia 25/10/11, o Superior Tribunal de Justiça, por quatro votos a um, decidiu que duas pessoas do mesmo sexo têm o direito de se casar, a despeito da omissão da legislação vigente no Brasil acerca do tema. A decisão foi proferida no julgamento do Recurso Especial n.º 1.183.348/RS.

A decisão foi histórica. A despeito de alguns juízes e algumas juízas terem reconhecido o direito de casais homoafetivos se casarem civilmente após a também histórica decisão do Supremo Tribunal Federal do dia 05/05/2011 (ADPF n.º 132 e ADIn n.º 4277), a decisão aqui comentada é de suma relevância por ter sido proferida pelo segundo tribunal em hierarquia no Brasil, que inclusive tem a competência para uniformizar a jurisprudência dos Tribunais brasileiros em matéria de Direito das Famílias (entre outras).

Tive o privilégio de poder fazer a sustentação oral em favor do casal de gaúchas perante o Superior Tribunal de Justiça. Considerando a enorme importância de tal decisão para os direitos civis dos cidadãos homossexuais, no que tange aos casais homoafetivos, o amigo militante Eduardo Piza tomou a iniciativa de pedir ao Dr. Gustavo Bernardes, que propôs a ação em favor do casal de gaúchas, bem como interpôs o recurso de apelação e o recurso especial em favor do casal, fazer um relato do histórico do caso, relato este publicado em seu blog2, no site do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual3 e no site do Grupo SOMOS4, que patrocinou a ação desde seu início. Quando soube de minha participação no julgamento, pediu-me o mesmo. É o que passo a fazer.

Na terça-feira, dia 18/10/11, um dia normal de trabalho, consultei o site do Superior Tribunal de Justiça para uma pesquisa de jurisprudência e, para minha surpresa, a notícia principal do site informava que o Superior Tribunal de Justiça iria decidir se duas pessoas do mesmo sexo poderiam se casar na quinta-feira daquela semana, dia 20/10/115. A notícia me causou enorme surpresa, pois não tinha conhecimento que havia uma ação de um casal homoafetivo pleiteando pelo direito ao casamento civil aguardando julgamento no Superior Tribunal de Justiça. Instintivamente, tive a vontade de participar deste julgamento, realizando parte da sustentação oral – tinha absoluta certeza de que o advogado do casal, quem quer que fosse, iria fazer a sustentação oral, dada a importância do caso, donde, por ter a certeza de que eu tinha condição de colaborar a favor do casal por ser um estudioso do chamado Direito Homoafetivo há anos (com livro e artigos publicados acerca da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos à luz do ordenamento jurídico-constitucional vigente, a despeito de sua omissão acerca do tema6). Contudo, para meu desespero, a notícia do site do STJ não informava o número do recurso especial em questão, o que em tese inviabilizaria a minha pretensão de verificar o andamento do processo e descobrir o nome do advogado do casal para, ato contínuo, tentar descobrir seu telefone pela internet e contatá-lo para perguntar se eu poderia dividir o tempo de quinze minutos de sua sustentação oral, com cinco minutos que fossem.

Mas, para minha sorte, a modernidade do mundo contemporâneo nos disponibiliza a fantástica ferramenta de buscas da internet chamada google. Assim, fiz uma pesquisa com algumas palavras-chave para tentar descobrir o número do processo (algo como “casamento civil pessoas mesmo sexo rio grande sul”), sendo que, dentre os diversos resultados de busca, havia um blog que comentava a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que havia negado o direito de um casal de mulheres acessarem o casamento civil – transcrevia a ementa do mesmo, criticava o posicionamento reacionário ali esposado e, para minha enorme felicidade, informava o número do recurso especial pendente de julgamento no Superior Tribunal de Justiça, interposto pelo casal contra dita decisão do Tribunal Gaúcho – REsp n.º 1.183.348/RS7.

(mais…)

Go to Top