Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Até então, um casal homossexual só podia registrar sua união em cartório como uma sociedade de fato – considerada como tendo apenas objetivos econômicos.
Comemorada pelos defensores da igualdade de direitos, a decisão ainda gera polêmica em setores mais conservadores da sociedade. Nesta entrevista, o juiz federal Roger Raupp Rios, doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor do mestrado em Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis, parte da decisão do STF para abordar questões mais amplas relacionadas aos direitos de homossexuais, como a discriminação no ambiente escolar e no trabalho.
Antes da decisão do STF, como a união de pessoas do mesmo sexo era considerada juridicamente?
No Brasil, a união de pessoas do mesmo sexo vinha sendo pedida pelo menos desde meados de 1990 pelos tribunais. Aos poucos, os tribunais, tanto nos estados quanto os federais, começaram a enfrentar essa questão.
De inicio, a união entre pessoas do mesmo sexo era reconhecida como sociedade de fato, ou seja, como se fosse uma simples união com objetivo econômico, e não com objetivo de união de vida — afetiva, sexual e assim por diante. Com o tempo, os tribunais começaram a reconhecer como união estável, ou seja, como uma união regida pelo direito de família. O que a decisão do STF acabou por referendar foi essa tendência que já vinha sendo observada nos tribunais.
Em termos jurídicos, a sociedade de fato é simplesmente o reconhecimento de que houve um esforço coletivo com o interesse de unir patrimônio, e nada mais do que isso. No direito de família, quando se fala de união, está-se dizendo que é muito mais do que um esforço de unir patrimônio. É uma comunhão de vida, de existência, projetos de vida, intimidade, privacidade, projeto de felicidade pessoal. E envolve aspectos familiares e afetivos, por exemplo. Muito mais do que um negócio, trata-se de uma vida em comum, como uma família.
Qual a diferença entre união estável e casamento em relação a direitos e deveres?
No direito de família, há várias figuras que podem constituir família. Uma delas é o casamento, que se constitui em um ato formal em que as pessoas vão ao cartório e, de acordo com a lei, formalizam e constituem uma família por meio do casamento. A união estável é outra forma de família reconhecida pelo direito. É quando as pessoas vivem juntas, como casal, mas nunca foram a um cartório registrar casamento, seja porque não tiveram oportunidade, porque não se importaram ou mesmo porque não desejaram isso.
As diferenças são muito poucas. Uma diferença mais notável é que, no casamento, pode-se optar pelo regime de bens a ser adotado. Na união estável, a lei já define que o regime de bens sempre será a comunhão parcial.
O reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo garante que essas pessoas tenham, por exemplo, o direito de indicar o parceiro como dependente em planos de saúde e na previdência, em associações e clubes que aceitam dependentes, além de declarar imposto de renda em conjunto. Os envolvidos têm também o direito de pleitear uma adoção em conjunto e direito de acompanhar o parceiro em tratamentos médicos e internações hospitalares. São questões referentes ao direito de família e que a sociedade de fato não reconhecia.
E há ainda outras questões envolvidas, como, por exemplo, a que envolve imigração: se um brasileiro se relacionar com uma pessoa estrangeira, essa pessoa vai ter sua permanência legalmente deferida no Brasil.
União estável e união civil são a mesma coisa?
Nos países e nos locais onde não se aceitava a união de pessoas do mesmo sexo como união estável, alguns pleiteavam uma outra figura, chamada de união civil ou parceria registrada. Era uma possibilidade que se pleiteava na ausência do reconhecimento da união estável. Rigorosamente, não é a mesma coisa, mas os efeitos buscados são os mesmos.
A decisão do STF é suficiente para garantir o direito à união estável ou ainda é necessário alterar a legislação brasileira?
É suficiente. Mas isso não impede que a legislação faça algum detalhamento para cuidar de outros detalhes. Por exemplo: a lei pode dar um nome específico para a união estável, dispor sobre forma de designar dependentes e assim por diante.
Se um cartório se negar a fazer o registro de uma declaração de união estável, o procedimento padrão é ir à corregedoria dos tribunais de justiça, que cuida do funcionamento dos cartórios em cada estado.
De que modo a aprovação da lei argentina que permite o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo influenciou as discussões em outros países latinoamericanos e no resto do mundo?
Na Argentina, no México, e no Uruguai também já se reconhece a união de pessoas do mesmo sexo. Sem dúvida, são medidas que fazem avançar essa ideia dos princípios democráticos e dos direitos fundamentais na esfera da sexualidade. E colocam o Brasil, no cenário internacional, no contexto de buscar proteger os direitos de seus cidadãos. Esses países influenciam porque mostram que há um claro movimento de respeito a esses direitos.
Que proteções existem hoje contra casos de discriminação sexual no Brasil? Homofobia ainda não é crime. Como a justiça pode responder a esses casos?
A homofobia, que é a discriminação por orientação sexual, é contrária ao direito. Ela é contrária à constituição e às leis nesse sentido. Assim, hoje, quem busca proteção porque foi vitima já tem direito a uma ação de indenização, seja por danos materiais, seja por danos morais. Se for vítima de um ato de violência física, por exemplo, pode pleitear indenização para isso.
A homofobia pode se manifestar na invasão de privacidade das pessoas, e ser respondida com medidas de proteção da privacidade, como o código civil estabelece. Isso tudo já existe. O que não aconteceu foi a aprovação de uma lei que diga que, além dessas proteções, que são de direito civil, exista também uma proteção de direito penal.
Existe um projeto de lei – o PLC 122/2006 –, mas ele não foi votado ainda. A homofobia é ato ilícito e já há respostas, especialmente no direito civil e administrativo, mas ainda não há uma lei que criminalize a homofobia.
Quais as perspectivas em relação à tramitação do PLC 122/2006? Que efeito a decisão do STF pode ter em relação a questões como essa?
Essa é uma questão política. Temos visto que, ao longo da história, esses projetos de lei envolvendo direitos e orientação sexual não andam. Porque não há vontade política de alguns setores, porque alguns setores fazem um bloqueio muito grande contra o andamento desse processo. Nesse sentido, talvez a decisão sirva de impulso para que isso ande. É o tempo que dirá se, dentro do Congresso, a dinâmica política vai ou não permitir isso.
Há políticas públicas contra a discriminação de homossexuais no trabalho?
Sim. O Ministério Público do Trabalho, em vários lugares do Brasil, tem agido contra a discriminação por motivo de orientação sexual no trabalho. Há, sim, essa possibilidade. Ele pode identificar situações de homofobia e celebrar termos de ajuste de conduta com as empresas para que elas deixem de praticar atos homofóbicos. Pode inclusive ajuizar ações coletivas para proteção contra homofobia. E os próprios empregados, uma vez vítimas de homofobia, por exemplo em casos de demissão arbitrária, já entram com ações judiciais na justiça trabalhista objetivando ou a indenização por danos ou a reintegração no trabalho. Esse movimento também acontece desde os anos 1990 e aparece cada vez mais.
E na educação? Como superar a prática da discriminação no ambiente escolar?
Há orientações envolvendo homofobia nos parâmetros curriculares nacionais, que são orientações do Ministério da Educação sobre conteúdos que devem ser contemplados. Há também o Parâmetro Curricular Nacional (PCN), que trata da orientação sexual, da diversidade sexual, apontando como esses temas devem ser tratados de forma respeitosa e aberta. Isso já existe.
O kit anti-homofobia anunciado pelo MEC é uma estratégia que pode contribuir para essa superação. Toda disponibilização de material adequado para esclarecer as pessoas em relação aos seus direitos, à cidadania, ao respeito aos direitos dos outros, ao combate à discriminação em geral, pode ajudar. E o objetivo do kit é esse. Há pessoas que não concordam, esse é um debate público que está presente inclusive na mídia. Mas um kit, seja esse ou outro, sem dúvida pode ser um instrumento útil.
Quais desafios o país ainda tem pela frente?
Os dois grandes direitos fundamentais de liberdade e igualdade (entendida como não discriminação) requerem uma mudança cultural. Exigem que se enfrente uma mentalidade arraigada na nossa sociedade. Infelizmente, tivemos e ainda temos muitos traços machistas. A própria perseguição a homossexuais infelizmente foi lei no Brasil por muito tempo, pelo menos até 1830. Essa mentalidade homofóbica continua. Desse modo, o primeiro desafio é uma mudança de mentalidade.
Outros desafios dizem respeito à capacitação do Estado para responder a essas questões. Quando pensamos na segurança pública, por exemplo, vemos que os agentes de segurança pública são essenciais para proteger os cidadãos contra a discriminação. Uma boa formação desses agentes para que tenham capacidade de exercer isso é um desafio. Assim como é um desafio a formação dos professores, especialmente na escola pública, para disseminar essa cultura democrática e respeitosa. Esses são alguns exemplos de grandes desafios.
A homofobia infelizmente ainda é muito recorrente no país. Vemos notícias de atos de violência explícita motivados pela discriminação em relação à orientação sexual. Recentemente houve episódios em São Paulo muito comentados. Essas coisas infelizmente são comuns. A homofobia é uma violência muito comum ainda no país.
Quais as dificuldades encontradas no Brasil em relação à garantia de direitos humanos de modo geral?
Ainda temos grande desigualdade econômica no Brasil. Uma parcela significativa vive em condição de miséria. Isso compromete o respeito a vários direitos humanos. A própria liberdade fica limitada quando as condições materiais são muito deficientes. Só para dar um exemplo, ainda temos notícia de tortura indevidamente cometida por agentes de segurança pelo Brasil afora. Isso é muito grave. Temos também diferenças muito grandes no Brasil com base na raça. Esse é outro grande desafio. A violência contra a mulher é também muito presente na nossa realidade. Isso chama atenção de como ainda são violados os direitos humanos no país e de como os desafios são grandes.
Qual sua avaliação do PNDH-3?
Falando em termos gerais, esse é mais um plano importante e necessário para dar diretrizes de como o Estado deve agir na proteção de direitos humanos. Acredito que cada plano tem sido mais detalhado e tem se beneficiado da experiência do anterior. Nesse sentido, é um passo avante que demos no Brasil.