O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e a ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais acabaram de protocolar pedido de ingresso como amici curiae (“amig@s da corte”) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 4275, movida pela Procuradoria-Geral da República no ano de 2009 para reconhecer o direito das pessoas transexuais mudarem seu nome e sexo independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização, mas mediante a apresentação de laudos psicológico e psiquiátrico que apontem que a pessoa realmente é transexual. GADvS e ABGLT são representados neste processo pelo advogado constitucionalista Paulo Iotti, atual diretor-presidente do GADvS.

Atualmente pode causar estranheza a Procuradoria-Geral da República (PGR) ter feito esse pedido apenas em favor de transexuais, sem incluir as travestis, bem como exigindo laudos psiquiátrico e psicológico para tanto. Para Paulo Iotti, “Isso provavelmente se deu por desconhecimento da diferença entre travestis e transexuais ou então pela PGR não ter se atentado sobre o drama absolutamente equivalente que sofrem as pessoas travestis”. Iotti, contudo, descarta a possibilidade de intuito discriminatório. “De forma alguma. A PGR tem se mostrado aliada dos direitos da diversidade sexual e da diversidade de gênero. Esta ação (ADI 4275), o parecer favorável à criminalização da homotransfobia (segundo parecer do MI 4733), a propositura da ação em prol da declaração de não-recepção (“inconstitucionalidade”) do crime de pederastia do Código Penal Militar (ADPF 291) e à aplicação não-discriminatória do Código Penal Militar a LGBTs e heterossexuais cisgêneros mostram que a PGR está sensível aos dramas da população LGBT. A não-inclusão das pessoas travestis deve ter se dado por um lapso”, acredita.

Na ação, já há manifestação favorável da PGR (que faz parecer mesmo em ações que ela propõe) e manifestação parcialmente favorável da Advocacia-Geral da União (AGU). Sobre esta, explica Paulo Iotti que “Ficou uma situação curiosa. A AGU defendeu que a ação deveria ser extinta porque ela entendeu que não seria possível interpretar a Lei de Registros Públicos de forma favorável a transexuais, por suposta violação da “vontade do legislador” e de seus “limites literais” (semânticos), do que discordo veementemente, mas no mérito (superada essa questão) se mostrou favorável ao pedido. A suposta “vontade do legislador” é algo que deve ser considerado irrelevante (interpretam-se textos de leis, não supostas vontades), já que do contrário não seriam possíveis evoluções interpretativas (que doutrina e jurisprudência aceitam costumeiramente) ou considerado errado (porque não há provas que o legislador se preocupou com o tema da transexualidade na época). No mais, a lei fala que qualquer pessoa pode mudar seu prenome (“primeiro nome”) se provar que seu “apelido público notório” (seu nome social) é diferente de seu (pre)nome civil e nada fala sobre mudança de sexo no registro civil, donde não há limites semânticos que impeçam a interpretação evolutiva da lei para proteger os direitos de travestis e transexuais. Há uma lacuna, uma omissão da lei, não uma proibição a transexuais e travestis”.

Sobre a cirurgia, GADvS e ABGLT transcrevem fala da ativista transexual Daniela Andrade, que destaca inclusive que as pessoas transexuais por vezes aguardam décadas na fila para conseguirem realizar a cirurgia, o que é uma razão a mais para não se condicionar o direito ao nome e ao sexo em coerência com a identidade de gênero da pessoa à realização da cirurgia. Segundo Daniela, em fala ratificada pelo GADvS e pela ABGLT em tal manifestação, juízes e promotores que exigem a realização da cirurgia de transgenitalização para mudar o nome de transexuais e travestisagem como se a coisa mais simples no Brasil fosse fazer essa cirurgia quando se precisa dela. Com filas durando DÉCADAS no serviço público – inclusive levando muitas pessoas trans* a se auto-mutilarem, e no particular com preços ultrapassando os 40 mil reais. A ativista continua afirmando que “esses juízes e promotores de justiça moram numa bolha chamada sociedade cisgênera em que as pessoas trans* só tem o direito de olhar de fora, às margens. Em que as pessoas trans* não possuem o direito à humanidade, aos direitos humanos”, e arremata destacando que “quando um juiz diz que uma pessoa trans* não tem direito a mudar o nome, é o mesmo que dizer que ela merece continuar sofrendo humilhação e constrangimento com um nome que não representa quem ela é. É A MORTE EM VIDA, é como não permitir que a pessoa tenha o direito de viver com dignidade (grifos nossos).

Iotti destaca que sua intenção foi levar ao STF a visão o mais contemporânea possível de gênero e sexualidade, embora acredite que ainda seria possível aprofundar um pouco mais. “Tenho que agradecer à Daniela Andrade por ter tão prontamente e várias vezes se disposto a conversar comigo sobre gênero e sexualidade para essa manifestação. Ela é uma verdadeira especialista no tema, brinco com ela que chega a ser deprimente conversar com ela sobre isso (!), pois vemos que realmente ainda sabemos muito pouco sobre a relação de gênero e sexualidade. Até porque eu, apesar de gay, sou cisgênero, o que me torna um simpatizante dos direitos de travestis e transexuais, então as conversas que tive com ela foram importantíssimas para eu evoluir algumas compreensões sobre o tema. Claro, tudo que escrevi é de minha inteira responsabilidade e qualquer imprecisão conceitual da manifestação tem que ser a mim atribuída e não a Daniela, mas ela certamente me ajudou a refinar os conceitos de transexualidade e travestilidade mencionados na manifestação. Creio que a visão tradicional sobre gênero já garante a procedência da ação, mas acho importante trazer os pensamentos mais contemporâneos ao STF. Contudo, a ação tramita há bastante tempo e, por isso, achei por bem protocolar dessa forma, até porque é algo que quero fazer há anos e me agoniava não ter conseguido fazê-lo ainda (embora, não obstante, o lado positivo foi eu ter feito uma manifestação de melhor qualidade do que a que eu teria feito no passado). Se conseguirmos melhorar a fundamentação, nada nos impede de apresentar uma nova petição nesse sentido”, explica Iotti.

Ademais, há uma manifestação favorável do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, na qualidade de amicus curiae. Duas outras ONGs, do Rio Grande do Sul (Nuances e Igualdade) pediram ingresso como amici curiae, mas o pedido foi indeferido pelo relator, Ministro Marco Aurélio, por ele entender que eram ONGs de atuação estadual e não nacional. Um erro, segundo Paulo Iotti. “A lei não exige que os amici curiae tenham abrangência nacional. Ela exige isso para o(a) autor(a) da ação perante o STF, mas não para os amici curiae, cuja única exigência é a representatividade do segmento que visa representar e a pertinência temática do seu objeto social com o tema respectivo, nada mais. Interpretar “representatividade” como “necessariamente” nacional por se tratar do STF me parece um equívoco”. De qualquer forma, como GADvS e ABGLT são entidades de atuação nacional, acredita que não devem sofrer o mesmo problema – principalmente a ABGLT, que já foi admitida no histórico processo sobre a união estável homoafetiva (ADPF 132 e ADI 4277), da qual Iotti também participou, representando a AIESSP – Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo. Aliás, Iotti fez questão de transcrever trechos da manifestação do Nuances e Igualdade, por considerar que tais ONGs têm o direito de se manifestar no processo pela sua luta em prol dos direitos de travestis e transexuais – manifestação esta que foi elaborada pelo GEDS – Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da Faculdade de Direito da USP – Universidade de São Paulo, por iniciativa de estudantes de direito, entre eles o agora advogado Thales Coimbra, integrante de escritório especializado em direitos da população LGBT.

GADvS e ABGLT requerem que o STF acolha “parcialmente” o pedido da PGR, para mudar nome e sexo de pessoas transexuais (e travestis), independentemente de cirurgia (como ela pediu), mas sem exigência de laudos psiquiátrico e psicológico. Na manifestação, argumentaram que isso se justifica “porque o direito à identidade de gênero relaciona-se com a autonomia moral da pessoa, inerente à dignidade da pessoa humana, que não pode ser condicionado a cirurgias ou à autoridade médica”, afirmando ainda que “A Lei de Identidade de Gênero argentina (Ley 26.743/2012[1]) é um marco paradigmático nesse sentido, cujo resultado pode perfeitamente ser atingido pela concretização da principiologia constitucional, adiante explicitada” pela manifestação, que se fundamenta no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), nos direitos da personalidade à identidade pessoal e social e à felicidade dele decorrentes, nos princípios da não-discriminação e da igualdade material (art. 3º, IV, e 5º, caput), no princípio da promoção do bem-estar de todos (art. 3º, IV) e nos direitos fundamentais à honra, à intimidade, à privacidade – no direito ao esquecimento, decorrente destes dois últimos (art. 5º, X) e à saúde (art. 196).

Vale citar, sobre direito à igualdade e à não-discriminação, a transcrição da máxima de Boaventura de Souza Santos, segundo a qual “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza[2]. Após transcrevê-la, GADvS e ABGLT defenderam que “impor a mesma consequência a situações desiguais, como a de transexuais (e travestis) relativamente a pessoas heterossexuais cisgêneras, implica em uma “igualdade” que descaracteriza tais pessoas, razão pela qual devem ser consideradas em sua especificidade (o sofrimento subjetivo, a discriminação e os constrangimentos que notoriamente sofrem quando identificadas por seu nome civil e sexo biológico, distintos de sua identidade de gênero) para se garantir-lhe(s) o direito à retificação de prenome e sexo jurídico independentemente de cirurgia de transgenitalização”.

Por fim, GADvS e ABGLT pediram urgência no julgamento da ação. “A ação foi proposta em 2009, inclusive concomitantemente com a então ADPF 178, convertida em ADI 4277, sobre a união estável homoafetiva, a qual foi julgada em maio de 2011. O drama de transexuais e travestis precisa ser enfrentado pelo STF o mais rápido possível”, justifica Paulo Iotti, que tem expectativa positiva para o acolhimento da ação – até porque, recentemente, em outro processo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral do recurso movido por uma pessoa transexual para mudar seu nome e sexo independentemente de cirurgia (RE 670.422/RS), o qual é patrocinado pela advogada Maria Berenice Dias, ex-desembargadora e autora do livro que Iotti considera um clássico sobre o tema, cujo título atual é “Homoafetividade e os Direitos LGBTI” – processo esse no qual ele informa que GADvS e ABGLT também se habilitarão formalmente. “Estou confiante de que no mínimo o direito de transexuais mudarem nome e sexo sem cirurgia e com laudos é um pedido que tem grande chance de ser acolhido. Lutaremos para que falem também do direito de travestis e em ambos os casos sem a necessidade de laudos, mas pelo menos o pedido feito pela PGR na petição inicial acredito que tem tudo para ser acolhido pelo STF – e a participação garantida de Maria Berenice Dias como advogada, no RE 670.422/RS e provavelmente como representante do IBDFAM na ADI 4275 certamente é um grande apoio. Berenice é um dos grandes nomes do Direito da Diversidade Sexual e da Diversidade de Gênero, então será ótimo tê-la a nosso lado novamente (como tivemos no caso da união estável homoafetiva, em maio de 2011)”, finaliza Iotti.

 

[1]Cf. http://www.ms.gba.gov.ar/sitios/tocoginecologia/files/2014/01/Ley-26.743-IDENTIDAD-DE-GENERO.pdf (último acesso em 19.09.14).

[2] Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. CHAUÍ, Marilena. Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento, 1ª reimpressão, São Paulo: Editora Cortez, 2014, p. 30. Grifo nosso.