O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e a ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais enviaram ofício à Comissão Nacional da Verdade na última segunda-feira, dia 06.10.14, visando a inclusão de um recorte LGBT no Relatório Final a ser elaborado pela mesma.

Para tanto, foi fundamental a colaboração de Renan Quinalha, advogado, assessor da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo e profundo estudioso do tema da Justiça de Transição – tendo livro (“Justiça de Transição. Contornos de um conceito”) e artigos publicados sobre o tema (além de ser doutorando em Relação Internacionais e mestre em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo).

No ofício, elaborado com base em artigo de autoria de Renan[1], destacou-se que constitui fato notório que, durante o período da Ditadura Militar, pessoas LGBT também foram vítimas de perseguições estatais, por intermédio tanto da censura quanto por meio do cerceamento de seu direito de ir e vir (mais enfaticamente contra travestis, mas também contra homossexuais assumidos ou assim identificados por terceiros), razão pela qual entende-se necessário, para fins da busca da verdade histórica, que conste, no relatório da Comissão Nacional da Verdade, um capítulo sobre a perseguição e a violação dos direitos humanos de pessoas LGBT ao longo da Ditadura Militar.

Destacou-se que, da análise atenta da Ditadura Brasileira, “percebe-se facilmente que o autoritarismo também se valeu de uma ideologia da intolerância materializada na perseguição e tentativa de controle de grupos sociais tidos como desviantes, destacando-se as violências cometidas contra  gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) por sua orientação sexual ou identidade de gênero diferentes dos padrões tidos como normais”. Isso fez com que pessoas LGBT (na época identificadas todos como “homossexuais”) fossem vistas como um “inimigo interno”, a ser combatido em prol da preservação da “segurança nacional”, da “família tradicional” e dos “valores” da sociedade brasileira.

Assim, destacou-se que “na época da ditadura, diversos foram os tipos de violações a direitos cometidas contra a população LGBT”. Sem pretensão de um rol exaustivo, destacaram-se casos devidamente documentados sobre os fatos da época, tais como “perseguição a travestis expostas ao olhar vigilante da repressão, sobretudo nos pontos de prostituição[2], onde eram enquadradas nos crimes de vadiagem (por não terem emprego com registro) ou de perturbação da ordem pública; censura à imprensa, ao teatro, às artes e a outras formas de expressão que simbolizavam de forma aberta as sexualidades dissidentes, muitas vezes com o respaldo do sistema de justiça; homofobia e lesbofobia institucionalizadas nos órgãos de repressão e controle (inclusive contra oficiais das Forças Armadas, como ainda hoje acontece); expurgos de cargos públicos (como o de 15 diplomatas cassados do Itamaraty em 1969, sendo que sete deles o foram sob a justificativa explícita de “prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa”[3]; difusão, pela imprensa, do preconceito contra os “desvios”, para reforçar a ideia de degeneração dos valores morais e o estereótipo do “inimigo interno” que justificava a repressão e agravava os preconceitos; desarticulação do então nascente movimento LGBT[4]e dos seus meios de comunicação, destacando-se os diversos jornais e, especialmente, aquele chamado O Lampião da Esquina[5], além da ausência de políticas de saúde pública adequadas para tratar das especificidades desses grupos sociais (como cirurgias de transgenitalização etc)”. E isso “sem mencionar os casos de homofobia e de machismo, velados ou não, cometidos no interior do próprio campo da resistência à ditadura. Inspirados por um “ethos de masculinidade revolucionária”, que compreendia a homossexualidade como um “desvio pequeno-burguês” ou uma “doença” a ser curada, os grupos de luta armada reproduziram as normas prevalentes de gênero e sexualidade. Até mesmo cogitou-se, em uma dessas organizações revolucionárias, o “justiçamento” (execução deliberada pela direção da organização) de dois homens militantes que estavam tendo um caso amoroso dentro da prisão[6]”.

Apontou-se, ainda, que baseando-se em registros orais, de imprensa e do exame dos documentos oficiais da ditadura, “emerge a constatação de que havia, de um lado, órgãos de Estado e agentes públicos empenhados em perseguir homossexuais, impedindo seus modos de vida e sua livre expressão, fechando lugares de sociabilidade e impedindo a articulação de um movimento identitário para promoção dos interesses desse setor social; de outro, fica evidente, conforme análise de documentos oficiais produzidos pela própria repressão, a maneira como a ideologia que informava a ditadura e seus valores eram completamente refratários e contrários a orientações sexuais e identidades de gênero tidas como desviantes”.

Ao defender um recorte específico para as violações dos direitos humanos da população LGBT na Ditadura Militar, argumentaram GADvS e ABGLT que “o foco excessivo na violação de direitos civis elementares atingidos pelo regime autoritário, como o direito à integridade física e à vida, faz perder de vista danos sociais de outras ordens, alguns deles muito subjetivos, causados pelo poder repressivo e que mudaram muitas trajetórias de vida”, afirmando-se em seguida que “Muitas pessoas não puderam viver livremente suas sexualidades e desenvolver uma sociabilidade, ou uma carreira profissional, ou projetos pessoais pelas diversas facetas de um preconceito que foi potencializado pelo fechamento do regime político e pelos valores morais conservadores que passaram a ser professados desde os órgãos de Estado”. Destacou-se a realização de duas audiências públicas “com o intuito de gerar pressão e produzir material para os relatórios das Comissões: a primeira, chamada ‘Ditadura e homossexualidade: a resistência do movimento LGBT’, foi realizada pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, em 26 de novembro de 2013, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo; a segunda, por sua vez, foi realizada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) com a Comissão da Verdade paulista e em parceria com o Memorial da Resistência no dia 29 de março de 2014”.

Anotou-se, ainda, que dessa análise histórica percebe-se que “a população LGBT é historicamente discriminada no Brasil, com ênfase no período da Ditadura Militar, razão pela qual a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero precisa ser criminalizada, como espécie do gênero racismo, para que a opressão homotransfóbica seja punida da mesma forma que as opressões por cor, etnia, procedência nacional e religião, critérios da atual Lei de Racismo. Até porque racismo, segundo o STF, é toda conduta que gere a inferiorização de um grupo social relativamente a outro (HC 82.424/RS), conceito este no qual homofobia e transfobia se enquadram”.

Assim, defendeu-se que “as melhores práticas no campo da justiça transicional exigem que haja permanente consulta social das pessoas afetadas para legitimação e efetividade das medidas de reparação. É preciso que comunidades específicas e experiências particulares sejam levadas em conta para que as políticas públicas destinadas a satisfazer essas demandas particulares se aproximem o máximo possível das expectativas e necessidades de uma sociedade plural e diversa”, concluindo-se no sentido de que “incorporar o recorte LGBT no trabalho de memória e justiça pode ser fundamental para permitir que a homofobia e a transfobia que persistem através da ditadura chegando à democracia seja combatida. Nomear e jogar luz sobre essa dimensão moral da repressão, 30 anos após transição democrática, já é uma maneira de começar a avançar no combate dos preconceitos que marcam a sociedade brasileira ainda hoje. Hoje vivemos um momento privilegiado para traçar essa ponte entre o passado e o presente. E que seja antes tarde do que nunca” – tudo isso a justificar, portanto, um recorte específico relativo às violações dos direitos humanos da população LGBT no Relatório Final a ser elaborado pela Comissão Nacional da Verdade.

Por fim, além da inclusão de um recorte LGBT em seu Relatório Final, requereu-se no citado ofício que a Comissão Nacional da Verdade recomenda ao Estado Brasileiro: “a) a criminalização da homofobia e da transfobia, eis que a tolerância e a impunidade em relação aos crimes de ódio (por ideologia, por raça, por orientação sexual ou identidade de gênero, dentre outros marcadores) têm servido de permissão para que, ainda hoje, tais violações de direitos sejam cometidas; b) a aprovação de lei garantindo a livre identidade de gênero às pessoas travestis e transexuais; c) a construção de lugares de memória dos segmentos LGBT ligados à repressão e à resistência durante a ditadura (ex. Delegacia Seccional do Centro na Rua Aurora, Departamento Jurídico XI de Agosto, Teatro Ruth Escobar, Presídio do Hipódromo; Ferro`s Bar; escadaria do Teatro,Municipal etc); d) pedidos de desculpas oficiais do Estado pelas violências, cassações e expurgos cometidos contra homossexuais em ato público construído junto ao movimento LGBT; e) reparação às pessoas LGBT perseguidas e prejudicadas pelas violências do Estado; f) convocação dos agentes públicos mencionados para prestarem esclarecimentos sobre os fatos narrados no presente relatório; g) revogação da denominação de “Dr José Wilson Richetti” dada à Delegacia Seccional de Polícia Centro, do departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo pela Lei 7076 de 30/04/1991; h) Alteração da redação do art. 235 do Código Penal Militar de 1969 que estabelece ser crime “praticar, ou permitir o militar que com êle se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”. A menção específica ao ato libidinoso homossexual, nesse texto normativo, além de ser desnecessária, revela a especial repugnância e perseguição a que os homossexuais estavam submetidos dentro e fora dos quadros das Forças Armadas”.

Finalizamos com um profundo agradecimento a Renan Quinalha, já que sem a sua colaboração não teria sido possível elaborar um ofício tão rico como este, com o qual temos a esperança de sensibilizar a Comissão Nacional da Verdade sobre a importância da inclusão do recorte LGBT no seu Relatório Final.

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[1] “A questão LGBT no trabalho de memória e justiça após a ditadura brasileira”, artigo no prelo, a ser publicado na coletânea Ditadura e homossexualidades no Brasil: repressão, resistência e a busca da verdade, organizado por James N. Green e Renan H. Quinalha, em 2014.

[2] Em matéria data de 1º de abril de 1980, o jornal Estado de São Paulo, em sua página 20, registra a proposta de “tirar os travestis das ruas de bairros estritamente residenciais; reforçar a Delegacia de Vadiagem do DEIC para aplicar o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais; destinar um prédio para recolher somente homossexuais; e abrir uma parte da cidade para fixá-los são alguns pontos do plano elaborado para combater de imediato os travestis , em São Paulo”. As chamadas “rondas” do delegado José Wilson Richettina região central, levavam de 300 a 500 pessoas para delegacias, conforme a matéria Sociólogo detido por “ronda” de Richetti fica preso três dias. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 de junho de 1980, Primeiro Caderno, p. 14 [nota do original].

[3] “Em vez de perseguir esquerdistas, como fizeram outros ministérios na época, o Itamaraty mirou nos funcionários cujo comportamento na vida privada afrontaria os “valores do regime”.Entre os aposentados à força, sem direito a defesa, estava o poeta e então primeiro-secretário Vinicius de Moraes.Mantido em segredo há 40 anos, o relatório da comissão confirma que o ódio contra homossexuais foi o fator que mais pesou na escolha dos cassados. Dos 15 pedidos de demissão de diplomatas, sete foram justificados com as seguintes palavras: “Pela prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa”” (O Globo, 2009).Repressão no Itamaraty: os tempos do AI-5. Reportagem de Bernardo Mello Franco. O Globo, Domingo, 28/06/2009. [nota do original]

[4] Sobre certo atraso imposto ao movimento LGBT brasileiro, Green afirma que “parece claro que se o governo militar não tivesse deslanchado uma onda de repressão, ampliado a censura e restringido os direitos democráticos em fins de 1968 com a imposição do AI-5 além de outras medidas, um movimento politizado pelos direitos de gays e lésbicas possivelmente teria surgido já no início dos anos 70” (p. 454). Ver também, nesta coletânea, sua análise sobre o surgimento do grupo SOMOS e as crises vividas por esse coletivo pioneiro do movimento LGBT brasileiro no campo mais geral da esquerda durante o processo de transição: “O grupo SOMOS, a esquerda e a resistência à ditadura” [nota do original].

[5] O acervo digitalizado com todas as edições desse jornal está disponível no seguinte link: http://www.grupodignidade.org.br/blog/cedoc/jornal-lampiao-da-esquina/ [nota do original]

[6] James Green investigou este caso em artigo no qual “direciona o olhar para o interior da esquerda brasileira, visando descobrir como os militantes radicais compreendiam a homossexualidade e como lidavam com membros de suas organizações que estavam em relacionamentos amorosos e sexuais com o mesmo sexo. Além disso, o artigo investiga como revolucionários com desejos homossexuais lidaram com as atitudes de esquerda em relação à homossexualidade”. GREEN, James. “Quem é o macho que quer me matar?”: homossexualidade masculina, masculinidade revolucionária e luta armada brasileira dos anos 1960 e 1970. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, p. 62 [nota do original].