Foi marcado, para o dia 20.04.2017, o julgamento do RE 670.422/RS, de Relatoria do Ministro Dias Toffoli, no qual o Supremo Tribunal Federal decidirá se transexuais podem, ou não, mudar seus nome e sexo, no registro civil, independente de cirurgia. Ou seja, se transexuais terão respeitado seu direito à identidade, independente de invasivo procedimento cirúrgico, que somente cinco hospitais públicos realizam no país, com uma cirurgia por mês cada (com fila de espera de muitos anos), e que tem valor milionário na iniciativa privada. Defende-se que a mudança dos documentos de transexuais (e travestis) não pode depender de cirurgia de transgenitalização, por não se poder “genitalizar a pessoa humana”, ante o ser humano ser um animal eminentemente político, social e afetivo, e não apenas biológico, de sorte a que a pessoa que se entende e se porta como uma mulher deve ser identificada com o gênero feminino (e vice-versa, relativamente a homens trans). Ademais, a exigência de cirurgia, na prática, inviabiliza o direito à identidade de gênero das pessoas trans, pela demora, de muitos anos, para realizar a cirurgia, perante o SUS, e seu valor milionário na iniciativa privada,

GADvS e ABGLT, representadas pelo advogado constitucionalista Paulo Iotti, peticionaram, hoje, 11.04.2017, pleiteando o julgamento conjunto do referido recurso com a ADI 4275, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio, com o mesmo objeto, no qual já foram habilitadas, enquanto amici curiae (“amigas da corte”). Pende de apreciação o pedido das mesmas no citado RE 670.622/RS.

Eis a síntese dos argumentos constitucionais da ação:

(i) princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88): a dignidade humana veda que a pessoa seja instrumentalizada para a consecução de outros fins (notória doutrina kantiana), ao passo que negar às pessoas transexuais a retificação de seu prenome e seu sexo jurídico implica em impor-lhes uma visão heterossexista cisgênera de mundo, que prega que somente um prenome coerente com o sexo biológico original (ou, ao menos, de acordo com um corpo operado para se equivaler ao de pessoa do outro sexo biológico) seria válido, inviabilizando ainda o direito fundamental implícito à busca da felicidade, reconhecido pelo STF (ADPF n.º 132, voto do Min. Celso de Mello), por mantê-las em uma situação de angústia e passível de humilhações incompatível com a dignidade humana constitucionalmente consagrada, pois “Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade”, donde “afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto” (STJ, REsp n.º 1.008.398/SP, DJe de 18.11.2009), o que independe da realização de cirurgia de transgenitalização, pois a real identidade da pessoa transgênera independe de cirurgia, mas apenas de sua identidade de gênero, relativa ao prenome pelo qual é conhecida, decorrente de seu sexo psicológico e de seu sexo social, o sexo como socialmente reconhecido (cf. TJ/RS, Apelação Cível n.º 70030504070, 08ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Rui Portanova, julgada em 29/10/2009);

(i.1) direitos da personalidade – identidade pessoal, social e sexual: o direito à identidade pessoal, sexual e social não pode ser vinculado a um invasivo procedimento cirúrgico quando isso não seja da vontade ou não seja possível à pessoa transexual, donde a pessoa que se identifica, é identificada e tratada por todos como pessoa de determinado gênero (“sexo”) deve ter a si reconhecido seu direito à retificação de seu registro civil independentemente de realização da cirurgia de transgenitalização para ter seus documentos adequados à identidade de gênero, mesmo porque “A distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade” (TJRS, Apelação Cível n.º 70030504070, 8ª Câmara Cível. Relator Desembargador Rui Portanova, julgado em 29/10/2009);

(ii) princípio da não-discriminação (art. 3º, IV, da CF/88): a negativa de retificação do prenome das pessoas transexuais implica em verdadeira (e arbitrária) discriminação por identidade de gênero, ao se negar reconhecer à pessoa um prenome e um sexo jurídico compatível com o gênero com o qual a pessoa se identifica, o que independe de cirurgia pelo descabimento da genitalização da pessoa humana aqui compatida;

(iii) princípio da promoção do bem estar de todos (art. 3º, IV, da CF/88): tal princípio gera o dever estatal de garantir a todas as pessoas as melhores condições possíveis para que possam viver suas vidas sem constrangimentos e humilhações e para que tenham condições de buscar a felicidade, o que evidentemente também se aplica a transexuais, donde deve o Estado permitir a retificação do prenome e do sexo jurídico das pessoas transexuais, independentemente de realização da cirurgia, pois o direito à identidade pessoal (e sexual) não pode depender de intervenções médicas a quem a elas não deseja se realizar – afinal, “A distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade social” (TJRS, Apelação Cível n.º 70030504070, 8ª Câmara Cível, Relator Desembargador Rui Portanova, j. 29/10/2009);

(iv) princípio igualdade material (art. 5º, caput, da CF/88): pois ele demanda o tratamento desigual a situações desiguais, o que é relevante no sentido de que o princípio da imutabilidade do registro civil não se aplica a casos de transexualidade porque foi imaginado para a generalidade das pessoas, que não são transexuais, que se encontram em situação desigual às pessoas em geral no que tange à sua identidade pessoal (dissonante de seu sexo psíquico), donde deve a elas ser permitida a retificação de seu registro civil para adequá-lo a sua realidade psicológica e social, de sorte a evitar que sejam expostas ao ridículo, a constrangimentos e humilhações diversas por seus documentos apontarem para uma realidade (biológica) que não se compatibiliza com sua realidade psicológica e social – “É meio de assegurar-lhe a dignidade, a liberdade, a integridade física e moral, a igualdade, pelo reconhecimento da sua diferença, através de conformação pessoal e única. De fato, também possui direito individual à identidade a pessoa que não corresponde à representação tradicional” (TJRS, Apelação Cível n.º 70022504849, 8ª Câmara Cível, Relator Desembargador Rui Portanova, julgada em 16/04/09). Afinal, na célebre máxima de Boaventura de Souza Santos, “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza” (SANTOS e CHAUÍ, 2014, p. 30). Nesse sentido, impor a mesma consequência a situações desiguais, como a de transexuais (e travestis) relativamente a pessoas heterossexuais cisgêneras, implica em uma “igualdade” que descaracteriza tais pessoas, razão pela qual devem ser consideradas em sua especificidade (o sofrimento subjetivo, a discriminação e os constrangimentos que notoriamente sofrem quando identificadas por seu nome civil e sexo biológico, distintos de sua identidade de gênero) para se garantir-lhe(s) o direito à retificação de prenome e sexo jurídico independentemente de cirurgia de transgenitalização, o que desde já se requer;

(v) direito fundamental à honra subjetiva e objetiva (art. 5º, X, da CF/88): o deferimento da retificação de registro independente de cirurgia é necessário para que deixe as pessoas transexuais de ter o sofrimento subjetivo notório, inegável e/ou incontestável de ter uma documentação afirmando algo distinto de sua realidade psicológica e social (honra subjetiva) e, ainda, para que deixe de sofrer constrangimentos nas situações da vida em geral nas quais precisa apresentar a documentação civil que mostre o seu prenome (honra objetiva), visto que uma pessoa que se entende como mulher, é tratada e reconhecida como mulher no meio social em que convive não pode ser identificada documentalmente de forma distinta que não a de uma mulher (e viceversa para o caso dos homens transexuais);

(vi) direito fundamental à intimidade e à privacidade (art. 5º, X, da CF/88): considerando que a transexualidade refere-se a tema que só pode ser considerado, senão como esfera secreta da vida da pessoa (como entendemos ser/intimidade), como uma informação que ela tem a prerrogativa (o poder jurídico) de evitar que as pessoas em geral tenham ciência a menos que seja de seu interesse a elas contar (privacidade), tem-se que o direito fundamental à intimidade e/ou o direito fundamental à privacidade das pessoas transexuais demanda(m) pela não-demonstração de sua transexualidade em seus documentos civis (documentos de identificação pessoal etc), pois um documento com nome e sexo masculino apresentados por uma pessoa de aparência feminina (e vie-versa) inegavelmente “denuncia” a transexualidade da pessoa, de sorte a ser necessária a retificação do registro civil para adequar seu prenome à sua realidade psicológica e social, a saber, de uma pessoa que se apresenta como mulher, é conhecida como mulher, é tratada como mulher é, em suma, uma mulher, independentemente de sua genitália e/ou de sua biologia (e viceversa para o caso dos homens transexuais);

(vi.1) direito ao esquecimento (implícito aos citados direitos fundamentais à intimidade e à privacidade): considerando, reitere-se, ser a transexualidade informação relativa à esfera secreta da vida da pessoa que ela tem o direito de impedir que terceiros dela saibam, gera-se o direito ao esquecimento como direito da personalidade, a justificar a retificação das pessoas transexuais em seu registro civil independentemente de cirurgia de transgenitalização, para que ele não seja lembrado cotidianamente que nasceu com sexo biológico discrepante de sua identidade de gênero (o que gera notórios sofrimentos e constrangimentos às pessoas transexuais em geral), e não o seja lembrada de tal por terceiras pessoas que a discriminem, lhe “olhem torto”, lhe destratem etc – cabendo lembrar que, consoante disposto no Enunciado 404 da V Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Jurídicos da Justiça Federal, a tutela da privacidade [e, consequentemente, da intimidade] compreende o controle das informações sobre a condição sexual das pessoas, donde a informação sobre o sexo biológico e, assim, da transexualidade das pessoas só deve ser fornecida por ela e a quem ela deseje (e a transexualidade de alguém é automaticamente revelada quando uma pessoa de aparência masculina apresenta um documento que indica um prenome feminino, e vice-versa no caso dos homens transexuais); e

(vii) direito fundamental à saúde (art. 196 da CF/88), pois sendo a saúde definida pela Organização Mundial de Saúde (na sua Constitução da Organização Mundial de Saúde, de 19488) como o completo estado de bem-estar físico, psíquico e social e não o mero estado de não-patologia, consideramos que o transexual pode ser considerado como de saúde prejudicada – não por ser detentor de uma patologia, mas por não ter um bem-estar psíquico e/ou social por conta da dissociação de seu sexo físico em relação a seu sexo psíquico, podendo a expressão disforia de gênero (SIC) ser entendida neste contexto (de necessidade de possibilitar o bem estar psíquico e social da pessoa transexual – e travesti). Sobre o tema, partindo deste conceito da OMS, a precisa lição de Vidal Serrano Nunes Júnior e Sueli Gandolfi Dallari, segundo os quais pode-se definir a “saúde como o bem fundamental que por meio da integração dinâmica de aspectos individuais, coletivos e de desenvolvimento visa assegurar ao indivíduo o estado de completo bem-estar físico, psíquico e social”, o que vem a reforçar a tese aqui defendida, já que o Estado Brasileiro deve assegurar ao indivíduo transexual (e travesti) a possibilidade de adequar seu prenome e seu sexo jurídico à sua identidade de gênero independentemente de cirurgia de transgenitalização para fins de garantia de seu completo estado de bem-estar psíquico e social. Aliás, sobre o direito à saúde, citem-se, ainda, os Enunciados 42 e 43 da I Jornada de Direito à Saúde, do Conselho Nacional de Justiça: “Enunciado 42. Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil”. Enunciado 43. “É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização”.

Vale ainda citar a valiosa lição de Carolina Valença Ferraz e Glauber Salomão Leite, que aduzem, com absoluta razão, que o direito à identidade pessoal, que é direito fundamental implícito, garante o direito da pessoa ser reconhecida “de acordo com o seu modo de ser, respeitadas todas as suas singularidades” e que, como direito de liberdade, “integra o núcleo do direito à identidade pessoal o direito à identidade de gênero”, sendo “indiscutível que, na esfera da identificação pessoal, no modo como o indivíduo concebe a si mesmo, de acordo com as próprias singularidades, o sentimento de pertencer a determinado gênero sexual é expressão das mais relevantes”, razão pela qual “o direito à identidade de gênero, portanto, consiste na garantia de livremente definir a qual gênero sexual pertence, de acordo com os sentimentos mais íntimos, valores e convicções”, assegurando-se ao indivíduo “a prerrogativa de expressar o gênero feminino ou masculino, havendo ou não correlação com as características físicas, na medida em que prevalecem nesse contexto as certezas que a pessoa tem em relação a si mesma, conforme a sua verdadeira subjetividade”. Assim, concluem os autores, também com absoluta razão, que “o sexo jurídico pode ser objeto de uma escolha livre do indivíduo, baseada em sua identidade de gênero, como expressão da dignidade humana”, razão pela qual “se a pessoa se identifica com o gênero feminino, se ela se vê desta forma, apresentando-se socialmente como mulher, ainda que fisicamente a genitália seja masculina (por não ter havido intervenção cirúrgica de transgenitalização), o direito deverá não apenas respeitar essa decisão pessoal como também reconhecer a sua validade, conferindo-lhe eficácia, para que as informações registrais sejam adequadas a essa realidade pessoal e social”, sendo “consequência inarredável da adequação do sexo jurídico, no registro civil, que a pessoa passe a ser tratada conforme a sua condição feminina em todas as esferas jurídicas (relações familiares, de trabalho, serviço militar, aposentadoria, contratos etc), para efeito de direitos e deveres, na medida em que o caso não é de mera alteração formal, restrita à realidade cartorial. É imperativo, sob pena de violação da sua personalidade jurídica, que no âmbito social e do direito seja admitida plenamente a sua condição de mulher” – e, igualmente, a condição de homem aos homens transexuais (pessoas que nasceram com o sexo biológico feminino mas têm identidade de gênero masculina), com o que evidentemente concordam os autores, que certamente utilizaram o exemplo das mulheres transexuais por se tratar de obra coletiva relacionada aos direitos das mulheres.

Logo, percebe-se que uma interpretação constitucionalmente adequada do tema demanda pela retificação de prenome e sexo jurídico de pessoas transexuais independentemente de cirurgia de transgenitalização (e a Constituição também exige a prevalência dos direitos humanos – art. 4º, II – donde não pode ser desconsiderados os Princípios de Yogyakarta na análise do tema). Sobre pessoas travestis, salvo engano as mesmas em geral manifestam desejo de mudar “apenas” o prenome, por não se identificarem com o binarismo de gêneros socialmente imposto, mas, se desejarem, devem ter a si reconhecido tal direito também com relação ao sexo jurídico por conta unicamente de sua identidade de gênero.

Esta ação defende o direito das pessoas transexuais, não mencionando o direito das pessoas travestis. Entende-se aqui que nada impede que a decisão, ou ao menos sua ratio decidendi (ou, ao menos, obter dictum), também reconheça o direito das pessoas travestis retificarem seu prenome e sexo jurídico independente de cirurgia de transgenitalização: reconheça-se o direito das pessoas transgêneras (termo que abarca travestilidade e transexualidade) retifiquem seu prenome e sexo jurídico independentemente de cirurgia de transgenitalização. A questão do prenome é idêntica nos dois casos, já que tanto pessoas travestis quanto pessoas transexuais têm um apelido público notório (art. 58 da Lei de Registros Públicos) distinto de seu prenome civil – e o apelido público notório é um conceito absolutamente equivalente ao de nome social, expressão já difundida relativamente ao prenome condizente com a identidade de gênero das pessoas travestis e transexuais. Sobre a autopercepção relativamente ao sexo não ser idêntica nas pessoas travestis e transexuais, na medida em que transexuais se identificam com um dos gêneros do binarismo de gêneros tradicional (feminino ou masculino) e travestis não se sentirem totalmente abarcadas nem pela masculinidade nem pela feminilidade (daí o signatário ter afirmado, aqui, que talvez possa-se definir a travestilidade, embora como um terceiro gênero), se a legislação só reconhece, como sexo jurídico, um dos dois gêneros tradicionais (feminino ou masculino) e por ser de um absurdo totalitarismo impor a alguém um gênero (“sexo”) em sua documentação com o qual ela não se identifica, cabe deixar às pessoas transexuais a decisão sobre qual o gênero (e o prenome) com o qual elas se identificam e às pessoas travestis a decisão sobre qual o gênero com o qual elas mais se identificam (e o prenome com o qual se identificam), dado que o sistema jurídico, salvo melhor jurídico, impõe o binarismo de gêneros.

Enfim. Como se vê, o conteúdo jurídico de tais princípios constitucionais afasta qualquer conclusão de “impossibilidade jurídica do pedido” e mesmo de “falta de interesse de agir”, como ainda insiste persistente jurisprudência reacionária a qual se explicita sinteticamente (em outro tópico) antes de refutá-la, ou mesmo de “falta de pressuposto processual” da mudança de prenome e sexo jurídico da pessoa transexual (e travesti) pela não-realização de cirurgia de transgenitalização” (pp. 06-12 da Petição n.º 37 da ADI 4275 – acessível por qualquer pessoa).