O GADvS — Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, associação civil sem fins lucrativos, inscrito no CNPJ sob n.º 17.309.463/0001–32, que tem como missão o ativismo por intermédio do Direito para garantia dos direitos fundamentais da população LGBTTI e o enfrentamento da homofobia e da transfobia, vem, através desta nota pública, manifestar seu repúdio à proposta de dissertação de mestrado intitulada “Casamento: sua natureza conjugal e relevância para o bem comum” da orientanda D.S.M.B.R. , tendo como orientador o Prof. Dr. V.S.P. à ser defendida na Universidade Federal do Pará e que tem, como objeto, o conceito de família e a proteção ao bens humanos básicos.

O resumo do trabalho, disponibilizado nas redes sociais pelo Diretório Central dos Estudantes da supracitada universidade, bem como pelo movimento social organizado local, apresenta a família como sujeito essencial para a “proteção e promoção dos direitos fundamentais e florescimento das pessoas que a integram”. Entretanto, a autora aponta que “não é qualquer conceito de família que está apto a promover e proteger bens humanos básicos.” O conceito que “efetivamente legítima normas jurídicas e promove a estabilidade e desenvolvimento social do Estado e dos envolvidos”, dispõe, é aquele definido pela chamada “Nova Teoria do Direito Natural”, “que nasce na consagração do casamento como uma união integral entre duas pessoas do sexo oposto e complementar”.

Fato notório, a referida nova teoria do direito natural é costumeiramente instrumentalizada na academia para aviltar discussões progressistas, como os direitos sexuais e reprodutivos – e nesse caso, em específico, para deslegitimar o casamento civil homoafetivo.

Desta forma, é com pesar que o GADvS toma ciência da produção deste trabalho acadêmico no seio do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, instituição alinhada à pesquisa e atuação no eixo dos Direitos Humanos – vilipendiados na presente proposta  de dissertação.

Como versa a melhor doutrina: Não assegurar qualquer garantia e nem outorgar quaisquer direitos às uniões homoeróticas infringe o princípio da igualdade e revela a discriminação sexual. A omissão configura violação aos direitos humanos, pois afronta o direito de livre exercício da sexualidade, liberdade fundamental do ser humano que não admite restrições de quaisquer ordens. ” (DIAS, Maria Berenice. 2006)¹

Veja que o casamento civil igualitário não se trata de mero capricho ou arranjo jurídico para a comunidade homoafetiva, mas de um direito humano fundamental dessas pessoas, conforme já amplamente discutido e positivado ao redor do mundo pelas mais altas cortes de justiça e organizações da sociedade civil.

No Brasil, a discussão foi superada pelo Supremo Tribunal Federal ainda em 2011, com o julgamento da ADI nº 4277 e da ADPF nº 132. Em seguida, o Conselho Nacional de Justiça, através da Resolução 175/2013, estabeleceu que, assim como os pares heterossexuais, os casais homoafetivos poderiam converter sua união estável em casamento civil, garantindo juridicamente o casamento igualitário no Brasil.

Desde então, dezenas de outros países somaram à mais justa interpretação a respeito da temática. Em 2017, a Austrália se tornou o vigésimo sétimo país a reconhecer as uniões entre pessoas do mesmo sexo, em um plebiscito histórico que contou com mais de 62% de aprovação da população.

Também histórica foi a recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, através da OC nº 24/2017, que estabeleceu que os Estados das Américas deverão reconhecer os direitos derivados de um vínculo entre casais do mesmo sexo.

Desta forma, resta claro afirmar que um trabalho acadêmico que tenha como objetivo discutir esta temática deve estar em consonância com a doutrina e jurisprudência atual e consolidada dos direitos humanos – julgamento este que fica reservado à banca que analisará o projeto.

Reservado o direito de cátedra e a liberdade didático-cientítica, que devem ser garantidos, salientamos que a Banca deverá avaliar a questão, também, sob a ótica da teoria do bem jurídico, considerando o potencial lesivo aos direitos e à dignidade de toda uma comunidade. Aliás, parece intolerável um trabalho acadêmico defender uma discriminação jurídica a um grupo social que a ninguém prejudica quando tem suas uniões conjugais reconhecidas pelo Estado. Desconsiderado absurdo argumento ad terrorem, é fato notório e inconteste que o reconhecimento estatal da união homoafetiva como entidade familiar e a garantia do regime jurídico do casamento civil a ela não implica menosprezo à heterossexualidade nem às uniões heteroafetivas, nem diminuição das uniões entre pessoas de gêneros opostos. O que se tem é, pura e simplesmente, o reconhecimento de igual respeito e consideração a casais homoafetivos relativamente a casais heteroafetivos. Supera-se, tão somente, a noção de heterossexualidade compulsória e, portanto, de heterossexismo, enquanto ideologias que pregam que as pessoas deveriam necessariamente ser heterossexuais (e se relacionar de forma heteroafetiva) para terem direitos e dignidade respeitados. Supera-se, assim, somente uma ideologia segregacionista que prega a inferioridade de uniões homoafetivas relativamente às heteroafetivas. Prejuízo nenhum há à sociedade e ao Estado. Lembrando-se que a conquista primordial do Iluminismo foi a superação da noção de que meras noções de imoralidade (e “pecado”) poderia justificar ilicitudes (principalmente penais). Pela mesma razão, discriminações juridicamente válidas só são toleráveis quando estritamente necessárias para garantir direitos de terceiros, algo flagrantemente inexistente aqui.

Destacam-se esses temas porque eles rotineiramente não são tratados em trabalhos que visam defender a discriminação de casais homoafetivos frente a heteroafetivos e da população LGBTI em geral frente à população heterossexual cisgênera. Sequer problematizam os temas da heterossexualidade da cisgeneridade compulsórias. Tomam suas identidades hegemônicas como “naturais” e as identidades minoritárias como as únicas “ideológicas”, como “o(s) Outro(s)” a ter(em) que se enquadrar aos ditames hegemônicos. Ignoram que democracia não é mera ditadura da maioria, não se limitando à regra da maioria, mas regime jurídico em que os direitos fundamentais de minorias e grupos vulneráveis devem ser respeitados como condição substantiva essencial para que a regra da maioria possa incidir. Isso é basilar no constitucionalismo contemporâneo. Pois, como diz o Ministro Roberto Barroso, não é porque você tem oito católicos e dois muçulmanos que o primeiro grupo pode deliberar jogar o segundo pela janela. As democracias constitucionais contemporâneas são marcadas pelo aspecto substantivo de proibirem a opressão de minorias pelo singelo fato de serem minorias.

Outrossim, frisamos que sendo uma Instituição de Ensino Superior Federal, a UFPA tem compromisso firmado com a laicidade estatal – princípio constitucional que garante direitos e proíbe a interferência da religião nos rumos políticos e jurídicos do país. Sendo certo que a efetivação deste princípio ainda é um desafio em processo de amadurecimento nas bases democráticas nacionais, a Universidade deve cumprir o papel que lhe cabe para garantir que a liberdade de crença não seja instrumentalizada para justificar violação de direitos ou discurso discriminatório.

Todos esses temas têm que ser avaliados com rigor pela Banca Examinadora. Que deve ser justa, mas justiça implica exigir que um trabalho que se pretende acadêmico enfrente as teorias predominantes de direitos humanos (no que, certamente, essa “Nova Escola de Direito Natural” não se enquadra) à luz de dogmática jurídica minimamente defensável. Não se pode simplesmente escolher uma teoria revolucionária e ignorar o conhecimento predominante. Quem quer reinventar a roda precisa, no mínimo, demonstrar que conhece a roda e enfrentar seus fundamentos. No caso, os fundamentos das decisões de STF, STJ, CNJ e Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o casamento civil igualitário, para ficar apenas nesse fundamento. Embora obviamente uma Banca Examinadora não deva reprovar trabalhos acadêmicos apenas por deles discordar, deve exigir enfrentamento da doutrina e jurisprudência predominantes sobre o tema jurídico analisado. Até porque o foco de uma dissertação de mestrado é, notoriamente, na medida do possível, esgotar o tema, razão pela qual decisões e teorias tão notórias a quem se dedique a mínimos estudos atentos sobre o tema em análise, supra explicitados, não podem deixar de ser analisados em uma dissertação de mestrado, ainda que para deles se discordar.

“Pois ? é Platão quem o diz -, quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia”. É a categoria do afeto como pré-condição do pensamento, o que levou Max Scheler a também ajuizar que “O ser humano, antes de um ser pensante ou volitivo, é um ser amante”. ²


¹
 (DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça, 3ª edição p. 85. 2006)
² Voto do Ministro Ayres Britto na votação da ADPF nº132, disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277.pdf (06/04/2018)

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GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero e SEMEAR Diversidade

por Paulo Iotti e Bruno Ferreira