NOTAS SOBRE O SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI 122 (CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA)
Por: Roger Raupp Rios
O objetivo desta nota é contribuir, do ponto de vista jurídico, com a reflexão sobre o substitutivo ao Projeto de Lei nº 122, que criminaliza a homofobia. A redação do substitutivo que ora se noticia, se comparada aos termos originais, suscita muitas indagações jurídicas. Dada a importância e a necessidade do combate à homofobia, é imprescindível colaborar, trazendo ao debate, ainda que de modo pontual e sucinto, alguns tópicos de grande relevância.
Nesta nota, são apenas suscitados alguns tópicos que saltam aos olhos à primeira vista, merecendo aprofundamento e aperfeiçoamento no projeto, desde sua concepção até seus conceitos e estrutura. Não se pretende qualquer apreciação exaustiva, nem definitiva, sequer sobre os pontos listados.
Com efeito, os direitos humanos e fundamentais requerem, para sua efetividade, uma série de medidas por parte do Estado e da sociedade. No caso do direito de igualdade, cujo conteúdo jurídico exige o combate a toda forma de discriminação, são necessárias medidas protetivas, inclusive por meio do direito penal, dada a intensidade de certas modalidades de discriminação e a gravidade das lesões daí decorrentes. Este, sem dúvida, é o caso da discriminação contra homossexuais, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, denominada de “homofobia”. No mundo todo há registros constantes e persistentes de grave violência física e simbólica contra tais indivíduos e grupos.
NOTA 1: sobre a criminalização da homofobia.
Sobre o ponto, reproduzimos manifestação lançada no jornal Folha de São Paulo (edição de 25 de agosto de 2007, por Roger Raupp Rios):
Um instrumento justo e necessário
UM DOS desafios básicos para a democracia no Brasil é a construção de uma sociedade sem discriminações, em que a liberdade de cada um conduzir sua vida de modo autônomo seja respeitada. Para tanto, é preciso agir em várias frentes: medidas educativas, oportunidades de participação política e serviços públicos de saúde, segurança e justiça preparados para lidar com a diversidade -tudo isso é necessário.
Nesse contexto, a legislação antidiscriminatória se revela, ao lado das demais iniciativas, um dos instrumentos mais importantes. Não é por acaso que, desde o final do nazi-fascismo, preconceito e discriminação têm sido criminalizados. No Brasil, por exemplo, a lei nº 7.716/1989 define como crime tratamentos prejudiciais por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
As funções que a legislação penal cumpre são insubstituíveis: além de possibilitar a punição de atentados graves contra a vida, a liberdade, a igualdade e a dignidade humana, a lei penal tem caráter pedagógico e simbólico. Ela aponta quais são os bens jurídicos mais relevantes, dentre os quais se inclui, sem dúvida, numa sociedade democrática e pluralista, o respeito à diversidade.
Tudo isso se torna urgente quando preconceitos, costumes e visões de mundo se voltam contra cidadãos pelo simples fato de não se identificarem ou não serem percebidos como heterossexuais (homofobia).
Desde há muito, homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais sofrem agressões físicas e morais intensas: assassinatos, espancamentos, ofensas verbais, demissão do emprego e exclusão escolar são terrível e vergonhosamente freqüentes. Essa dinâmica é alimentada, direta e indiretamente, por opiniões e atitudes intolerantes diante de tudo que contrarie essa mentalidade heterossexista.
Nesse quadro, a inclusão da homofobia entre as formas de discriminação penalmente puníveis é justa e necessária. Necessária porque, além de ter caráter repressivo pela punição de atos homofóbicos, atua preventivamente, evitando e desencorajando tais práticas. Justa porque fortalece o respeito à diversidade e à dignidade humana, sem o que não há garantias para a igual liberdade de todos, independentemente de cor, origem, religião, sexo, orientação sexual, identidade de gênero ou outras formas de discriminação.
Deixar a homofobia fora da lista de discriminações que a lei penal sanciona é atentar gravemente contra a democracia, a liberdade e a dignidade humanas, relegando um sem-número de cidadãos a uma cidadania de segunda classe.
Ao mesmo tempo, é minar o convívio pluralista e tolerante, sem o que ninguém pode sentir-se seguro de que não será discriminado em virtude de sua identidade ou escolhas fundamentais relacionadas a cor, origem, religião, raça, sexo, gênero, orientação sexual, deficiência ou idade.
No caso da homofobia, há muito que avançar, pois homossexuais, travestis e transexuais ainda são estigmatizados e subjugados como seres abjetos.
Não se trata de cerceamento das liberdades de opinião ou de religião. Assim como na proibição do racismo, o que se quer evitar é que a injúria e a agressão, fomentadoras do ódio e da violência, campeiem sem restrições, pondo em risco e ofendendo a vida e a dignidade.
A proibição de discursos e práticas discriminatórias não inviabiliza as liberdades de opinião, crença e manifestação. Ao contrário, a prática das liberdades no mundo plural requer seu exercício sem violência ou intolerância (como, aliás, legitimamente ocorre na criminalização do escárnio público de alguém por crença religiosa).
Prover o Brasil dos instrumentos para combater a homofobia é tanto mais necessário quanto mais vulneráveis são os indivíduos e grupos objeto de preconceito e quanto mais intensa é a discriminação.
Trata-se não só de imperativo constitucional e de compromisso democrático como também do respeito que é devido a todos os seres humanos, independentemente de identidade, preferência ou orientação sexual.
NOTA 2: o regime geral no direito penal antidiscriminatório brasileiro (Lei nº 7.716/1989) e a apartação do substitutivo
Ponto de extrema importância é o tratamento legislativo separado por proposto para a homofobia. O substitutivo cria um regime legislativo que aparta a proteção jurídica penal em face da homofobia diante de outras formas de discriminação, cuja proteção jurídica penal se insere na Lei 7716/1989 (que trata dos crimes decorrentes do preconceito por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional).
Do ponto de vista jurídico, não há motivo para esta separação legislativa. Ao contrário, ela prejudica o desenvolvimento e a efetividade do direito antidiscriminatório brasileiro, não trazendo nem segurança jurídica, nem coerência ao sistema jurídico e à aplicação da lei.
Além disso, as esferas jurídicas protegidas pelo substitutivo estão aquém da proteção propiciada pela Lei 7716/89, caracterizando um tratamento desigual e discriminatório em face dos diversos grupos sujeitos à discriminação, a princípio, vício de inconstitucionalidade. Isso sem se falar na proteção jurídica insuficiente, dada a omissão em áreas onde o enfrentamento da discriminação homofóbica é imprescindível, o que também compromete a constitucionalidade do substitutivo.
Neste contexto, a opção pelo tratamento da homofobia de modo apartado à lei geral antidiscriminatória não é mera opção legislativa, mas aponta para uma desvalorização da proteção jurídica quando o assunto é homofobia.
Nota 3: “sexo”, “orientação sexual” e “identidade de gênero” na redação do substitutivo
O texto substitutivo adota uma compreensão do conceito de “sexo” muito restrita, diminuindo, de forma inconstitucional, a proteção jurídica que os tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição prevêem. Isto porque, quando o ordenamento jurídico se utiliza destes termos, especialmente o termo “sexo”, não se alcança somente a distinção entre “homens e mulheres”, considerados biologicamente, como também toda a discriminação motivada pelo gênero (vale dizer, as representações culturais, da masculinidade e da feminilidade).
Tanto assim que, por exemplo, um homem heterossexual, por ser considerado “afeminado”, poderá sofrer discriminação por motivo de sexo (aqui englobando, logicamente, o gênero, isto é, repita-se, as representações culturais associadas ao sexo biológico). Esta compreensão, a propósito, está presente desde o final dos anos 1950 na jurisprudência da Corte Européia de Justiça.
Ainda que não pareça querer restringir a idéia de gênero ao campo da “identidade de gênero”, o texto substitutivo somente faz menção ao gênero em tal contexto, o que pode induzir a interpretações restritivas, que protegem de modo insuficiente contra a discriminação.
No que se refere à “orientação sexual”, a definição proposta pelo substitutivo não esclarece qual elemento qualifica, para fins de aplicação da lei, quem são os destinatários da proteção antidiscriminatória. É necessário definir de modo mais claro quando alguém ou alguma situação configura discriminação em relação à “homossexualidade”, “heterossexualidade” e “bissexualidade”.
Pergunta-se: trata-se de proteção de alguém que se identifica como tal ou que é identificado por terceiros, esteja este sujeito de acordo ou não com a identificação alheia? Por exemplo: se Pedro é discriminado por um agente público, em virtude deste atribuir-lhe a identidade homossexual, apesar de Pedro só se interessar sexualmente pelo sexo oposto, configura-se a hipótese protegida contra discriminação? Se algum agente privado percebe troca de amabilidades entre dois heterossexuais e os discrimina por este fato, incide o comando legal? Se Maria tem uma conduta sexual dirigida a outra mulher, e se delcara heterossexual, está protegida? Estas hipóteses deixam claro que é necessário definir “orientação sexual” de modo mais claro e preciso, tanto para propiciar segurança jurídica, quanto para tornar mais efetiva a legislação.
Considera-se, para início do debate, que não é tarefa da legislação nem da ciência jurídica definir o que são “sexo”, “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Tais definições são totalmente inapropriadas para a ciência jurídica, sendo objeto de outros campos do saber e da dinâmica social e cultural.
Ao invés disso, a lei andará muito melhor se definir o âmbito de proteção antidiscriminatória, a partir do conceito jurídico constitucional de discriminação. Nos seus termos, pode-se assim sugerir:
“Para os fins desta lei, constitui discriminação qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, motivada por motivo de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, que tenha o propósito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública.
A seguir, pode-se inserir um artigo explicitando hipóteses de discriminação conforme os critérios listados, do seguinte modo:
– Para os efeitos do artigo anterior, consideram-se “discriminação por motivo de sexo” as distinções, exclusões, restrições ou preferências relacionadas a referências biológica, morfológica, genética, hormonal ou qualquer outro critério distintivo que importe nas designações sexuais relativas a homens e mulheres; “discriminação por motivo de orientação sexual” as distinções, exclusões, restrições ou preferências relacionadas a identidade, comportamento, preferência, conduta, ou qualquer outro critério distintivo, que importe na atribuição da homossexualidade, heterossexualidade ou bissexualidade; “discriminação por motivo de identidade de gênero” as distinções, exclusões, restrições ou preferências relacionadas a identidade, comportamento, preferência, conduta, ou qualquer outro critério distintivo, que importe na atribuição da condição travesti ou transexual.
Parágrafo único: a proteção às discriminações referidas alcança as distinções, exclusões, restrições ou preferências relacionadas ao gênero, não importa o sexo, a orientação sexual ou a identidade de gênero dos envolvidos.
Por fim, ainda quanto a este ponto, é necessário explicitar, na linha dos tratados internacionais de direitos humanos e do direito antidiscriminatório, que ações afirmativos que considerem sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, por não constituírem discriminação, mas, ao contrário, medidas de combate à discriminação, não configuram discriminação.
Neste sentido:
“Para os efeitos desta lei, não são consideradas discriminação as medidas especiais, tomadas com o objetivo de assegurar a progresso adequado de grupos discriminados, bem como o enfrentamento da discriminação por eles experimentada, a fim de propiciar a proteção necessária para o gozo e o exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais.”
NOTA 4: sobre a limitação das esferas protegidas no substitutivo
A limitação da proteção penal somente para as esferas do mercado de trabalho, das relações de consumo e para hipótese de incitação de violência é inadequada e deixa faltando, do ponto de vista penal, toda a proteção contra discriminação que a Constituição exige em muitas outras esferas essenciais da vida.
Basta um rápido olhar sobre o direito já existente, especialmente as Leis nº 7.716 (com as redações das Leis nº 9.459/1997 e 12.228/2010) e a nº 7.437/1985:
a) na oferta e prestação de serviços públicos (comparar com a Lei nº 7.716, art. 12);
b) no âmbito educacional, público ou privado (comparar com a Lei nº 7.716, art. 6º);
c) nos meios de comunicação (comparar com a Lei nº 7.716, art. 20, p. 2º), inclusive pela internet (art. 20, p. 2º, III);
d) nos serviços de saúde, públicos ou privados;
e) nas relações de família (comparar com a Lei nº 7.716, art. 14);
f) em diversos espaços de convívio social (comparar com a Lei nº 7.716, arts. 9º e 11);
g) nas Forças Armadas (comparar com a Lei nº 7.716, art. 13);
Com efeito, as esferas acima indicadas registram altíssimo grau de discriminação homofóbica, especialmente as relações de família, saúde, educação e meios de comunicação social.
CONCLUSÃO
Esta nota é somente uma contribuição para o debate jurídico do substitutivo apresentado ao PL 122, onde alguns pontos são destacados. Muitos outros requerem exame e atenção, que, por espaço e tempo, aqui não foram objeto de atenção. O que se espera, com sua elaboração, é colaborar para a efetividade do direito de igualdade e o aperfeiçoamento do direito antidiscriminatório brasileiro.